“Aprendemos a conviver com a água“
A elevação do nível do mar causada pelo aquecimento global já é uma realidade para os moradores de países insulares da Ásia e da Oceania, como Maldivas, Tuvalu e Kiribati. O governo deste último, aliás, já tomou uma providência extrema: comprou 2.400 hectares de terra no arquipélago de Fiji, a cerca de 1.600 quilômetros de distância, para alojar seus habitantes quando a situação ficar insustentável, possivelmente na metade deste século.
O resto do mundo, porém, parece não estar muito preocupado com o problema. A exceção é a Holanda. Há séculos envolvido numa guerra contra o mar, o país está atento para a situação e tem desenvolvido tecnologias de ponta para enfrentá-la. Han Peters, embaixador da Holanda no Brasil, fala a seguir sobre esses esforços e como eles também podem ajudar na solução de desastres ambientais como o de Mariana (MG), em 2015.
A Holanda tem uma relação com a água intensa e constante, já que parte de seu território foi conquistada do mar. Como essa característica surgiu e evoluiu ao longo do tempo?
PETERS – Nós, holandeses, temos uma relação única com a água. Ela é a nossa melhor amiga e maior inimiga. Dizem que temos água em nosso DNA, que ela faz parte da nossa identidade nacional. Ao longo dos séculos, temos travado diversas batalhas contra a água. Moinhos foram usados para controlar seu nível e diques foram construídos para manter os holandeses secos. Após a tragédia de 1953, quando uma tempestade causou enchentes e mais de 1.800 mortes, os esforços nacionais foram redobrados, incluindo as Obras do Delta, um grande sistema de defesa contra inundações que protege os es¬tuários dos rios Reno, Mosa e Escalda. O grande diferencial é que aprendemos a não combater mais a água, mas a conviver com ela. Por todos os lados criamos bacias de coleta, garagens, parques e praças que também servem como reservatórios, para quando o mar e cursos d’água avançam e ameaçam inundar a região.
O know-how holandês na área surgiu de uma cooperação intensa entre governo, instituições de pesquisa e iniciativa privada. Como se chegou a esse modelo?
PETERS – A necessidade de evitar a inundação de grande parte do nosso território fez com que os holandeses desenvolvessem uma abordagem inovadora para o problema da água, resultando em um trabalho conjunto entre governo, comunidades de pesquisa e o setor privado. Esse modelo de cooperação existe há muito tempo: já na Idade Média, agricultores, moradores das cidades e nobres tiveram de trabalhar juntos para construir diques e, assim, manter os pés secos. Uma cooperação democrática, unindo todos, independentemente da origem ou do status. Em 1232, a primeira cooperativa especialmente focada no assunto (waterboard) foi fundada, dando início à cooperação, em nível local e regional, para manejo de água.
Quais foram as principais iniciativas adotadas pela Holanda em termos da elevação do nível do mar?
PETERS – As iniciativas mais famosas ainda são as Obras do Delta, também conhecidas como “A oitava maravilha do mundo”, realizadas após o desastre em 1953. Engenheiros e arquitetos desenvolveram esse projeto pioneiro para permitir que os holandeses convivessem com a água, em vez de combatê-la, assim protegendo a terra ao redor do delta Reno-Mosa-Escalda. Uma das obras mais destacadas desse complexo é a Maeslantkering, uma barreira móvel contra tempestades que protege o porto de Roterdã. As portas da barreira são enormes pontões flutuantes que podem ser preenchidos com água em caso de tempestades. O peso adicional faz com que elas afundem e se tornem uma enorme barreira. Quando a situação volta ao normal, a água é bombeada para fora dos pontões. Todo esse processo é automático e controlado por computador. A primeira vez na história da Holanda em que todas as cinco maiores barreiras contra tempestades foram fechadas foi em janeiro deste ano!
PLANETA – Em 2010, falava-se que o custo dessas providências chegaria a 1 bilhão de euros por ano a partir de 2020…
PETERS – Não sei responder sobre os números exatos, mas posso dizer que na Holanda, em geral, não vemos esse confronto com a água somente como um peso na economia; ao contrário, ele também representa uma oportunidade. Somos uma nação construída sobre a água. Convertemos nossos problemas numa poderosa vantagem competitiva, aplicando no mundo o conhecimento especializado adquirido ao longo do tempo. No Brasil, por exemplo, temos empresas holandesas de dragagem construindo portos e canais, empresas de engenharia desenvolvendo soluções sustentáveis para problemas de água no setor de mineração, etc.
A Holanda já teria alguma solução para evitar o impacto da elevação do nível do mar em cidades litorâneas ameaçadas como Santos, Rio de Janeiro ou Nova York?
PETERS – O reconhecimento internacional já levou especialistas holandeses para o mundo todo, ajudando áreas no sudeste da Ásia, como Jacarta (Indonésia) e o Delta do Mekong (Vietnã), mas também nos Estados Unidos, onde a Holanda participou da reconstrução de barreiras e diques na cidade de Nova Orleans após o furacão Katrina, em 2005.
A Holanda também adquiriu expertise no tratamento de água doce, em função de separá-la da água salgada. Como esses conhecimentos podem ser aplicados, por exemplo, em uma tragédia ambiental como a ocorrida em Mariana (MG) em 2015?
PETERS – Desde o século passado a Holanda tem aplicado a separação de água doce e água do mar nas suas eclusas. O sistema se aproveita da diferença de densidade de ambas, o que permite que a água salgada seja retirada pela parte inferior da eclusa. Hoje em dia, uma nova tecnologia garante uma melhor separação das águas nas eclusas. Ela foi desenvolvida pelo instituto holandês de pesquisa aplicada Deltares e pela empresa Royal Haskoning DHV em parceria com o governo holandês, por meio do departamento Rijks¬waterstaat. A tecnologia se baseia num muro feito por bolhas de ar. Os jatos de bolhas evitam que as águas se misturem. A aplicação protege os sistemas ecológicos de água doce por trás das eclusas. Existem estudos para aplicar essa tecnologia da cortina de bolhas em si¬tuações além de eclusas – por exemplo, na foz do rio Mosa, no porto de Roterdã. Mas a fase de implementação dela ainda não chegou.
Esses conhecimentos foram apresentados aos responsáveis por recuperar a região? Qual foi o retorno obtido?
PETERS – Essa tecnologia específica de separação de água doce e salgada não foi apresentada à Fundação Renova (instituição autônoma e independente constituída pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton para reparar os danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão – N. da R.), ao Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais (Indi) e ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Porém, outras áreas de expertise foram introduzidas por empresas holandesas como Deltares e Royal Haskoning DHV em setembro do ano passado. Os conhecimentos incluem recuperação ambiental, manejo de sedimentos, modelagem para prever o comportamento do rio (precipitação, turbidez, etc.) e tratamento de esgotos e águas residuais. Neste último tema, a Royal Haskoning DHV tem desenvolvido uma tecnologia inovadora que trata a água de modo mais eficaz usando menos espaço e energia. Essa tecnologia, com o nome Nereda, já está sendo aplicada no Brasil e foi apresentada aos atores anteriormente citados e a alguns municípios na bacia do rio Doce. Com base no contato com a Fundação Renova, em setembro, várias empresas holandesas têm preparado apresentações detalhadas para discutir o possível uso de suas tecnologias e conhecimentos nos programas da fundação. Atualmente, essas apresentações estão sendo avaliadas por gerentes de diversos programas através do contato entre a Embaixada da Holanda (seu escritório de apoio aos negócios NBSO Brazil, em Belo Horizonte) e a Renova.