O termo “cidades inteligentes” vem mobilizando o pensamento sobre tecnologia e políticas públicas. Indo além da simples engenharia, essas ações teriam como proposta integrar cidadãos e governos através de sistemas como forma de melhorar a vida em comum. Uma palestra na Campus Party Recife nessa quinta (19) levantou questões que mostraram que o assunto é bem mais complexo do que parece. Segundo o consultor de cenários e gestão estratégica do Porto Digital, Cláudio Marinho, existe hoje uma dificuldade para os governos oferecerem serviços inteligentes aos cidadãos. “Existe hoje um entrave no poder público em conectar serviços urbanos aos cidadãos empoderados pela tecnologia”, disse. Por causa dessa discrepância, diversos assuntos como mobilidade, sustentabilidade, segurança e governança não são atendidos de uma maneira eficaz. Sobre o assunto, Marinho soltou a frase mais inspirada da noite de ontem: “Recife é mais amada que habitável”. A cidade começa agora a divulgar ações voltadas para cidades inteligentes. Uma delas é o sistema de aluguel de bicicletas feita em parceria com o Porto Digital. Há também uma mesma iniciativa do Governo do Estado. A população pode acessar um site ou um aplicativo e usar as bikes para locomoções curtas. Há também um concurso acontecendo que incentiva desenvolvedores a usar os dados abertos da prefeitura para criar soluções e aplicativos. Mas, para Marinho ainda há erros na atual gestão, como o incentivo à verticalização, que não é típico de uma cidade inteligente. O mesmo vale para o incentivo ao uso do carro. “Não sou contra o adensamento urbano, que é ótimo para a cidade por diminuir custos e promover a criatividade. Mas, o empilhamento habitacional do modo como está sendo feito é insustentável”, disse. “Estamos emburrecendo no modo de fazer cidade. É um retrocesso em algo que já fomos tão bons, como arquitetura e urbanismo. Cuidado com a DeltaCity Quem lembra do cenário nada idílico de Robocop? O futuro pensado no clássico filme de Paul Verhoeven mostrava uma sociedade futurista dominada por uma única corporação e com todos os serviços integrados e conectados. O mesmo vale para outras obras, como o mundo de Homem-Aranha 2099, em que a opressão é total. “Precisamos ter cuidado com essas ‘smart cities’ em que tudo é coordenado e controlado de cima para baixo”, explicou Marinho. O professor de filosofia e ativista dos Direitos Urbanos Leonardo Cisneiros lembrou que as tecnologias não podem segregar as pessoas. “A tecnologia não pode se sobrepor às interações das pessoas. As cidades são misturadoras de gente e o que acontece no Recife hoje é um isolamento, seja através do uso do carro ou do incentivo aos grandes centros de compras. Isso gera uma padronização, o que é péssimo para a criatividade”, disse. Cisneiros lembrou que muitas vezes a tecnologia investe em um paradigma ultrapassado. Um exemplo prático foi a demora para a máquina de escrever ser aposentada de uma vez. Criaram-se as elétricas, as com corretor integrado. O mesmo estaria acontecendo com os carros. “O Google gasta milhões para desenvolver um carro autônomo, controlado por computador, inteligente, que não bate, etc. Mas ainda é um carro. Ou seja, contribui para segregar, complicar o trânsito e é contraproducente já que leva poucas pessoas comparado ao transporte coletivo”, explicou Leonardo. A revolução é retrô Recife e cidades como São Paulo e Rio de Janeiro viveram nos últimos anos um incentivo ao uso da bicicleta como modal de transporte. É prático, barato e mais rápido que pegar um carro ou esperar um ônibus. Ainda tem como vantagem o fato de ser um exercício físico, dizem seus entusisastas. Mas essas magrelas promoveram mais do que uma mobilidade, mas uma revolução. “Muitas vezes uma revolução vem de algo que aparentemente é menos tecnológico, como as bicicletas”, disse Leonardo. “Recife deu um passo importante e já vemos crescer o interesse por esse sistema com a ampliação de ciclofaixas”. No encontro ainda estave presente Ângelo Leite, presidente da Serttel, empresa pernambucana que criou os sistemas de aluguel de bikes no Recife e no Rio de Janeiro. “As bicicletas estão promovendo uma reapropriação da cidade pelas pessoas. Com velocidade reduzida e uma maior exposição passamos a refletir mais, a pensar mais, a olhar a cidade. Isso já está gerando uma mudança, com as pessoas descobrindo mais o seu próprio bairro, incentivando os pequenos comércios e ocupando mais os espaços públicos”. |