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Setor elétrico: uma história de reformas

Texto de Renato Queiroz*, publicado no InfoPetro - 11 de setembro de 2013 1153 Visualizações
Setor elétrico: uma história de reformas
 
Para uma atividade altamente institucionalizada, como é a oferta de energia elétrica, reformas são sempre recursos para os grandes freios de arrumação dos desajustes setoriais. Querendo-se ou não, todo marco institucional dura enquanto gera os resultados que se espera dele. Quando ele não entrega mais o prometido, simplesmente se troca de marco. É assim em qualquer setor elétrico do mundo. A questão toda é o tempo certo de saltar do marco ultrapassado pela evolução do setor, vencendo a inércia política e escapando dos prejuízos inexoráveis da sua manutenção.
Dessa maneira, o setor elétrico evolui de reforma em reforma, tangido pelos acordos políticos que, a cada momento, sustentam o arranjo institucional que melhor explicita os objetivos desejados e a mobilização dos recursos necessários para alcançá-los. Afinal, os negócios no mercado de energia mobilizam montantes significativos de recursos financeiros que resultam em obras de engenharia, no desenvolvimento de novas tecnologias, na expansão de unidades fabris, na criação de novas empresas, etc. A destinação desses recursos financeiros em projetos energéticos depende das decisões que ocorrem no âmbito das políticas energéticas dos governos que desenvolvem esforços para a materialização dessas decisões no período em que estão à frente de seus países.
Acontece que, muitas vezes, as decisões dessas políticas necessitam de entendimentos e negociações entre os agentes que podem ultrapassar os mandatos dos governos, antes de suas implantações. O risco de fracasso da materialização de projetos energéticos, por exemplo, pode ocorrer, se as decisões forem açodadas, baseadas em frágeis consensos, trazendo insegurança aos investidores e aos agentes como um todo.
O mercado de energia é normalmente constituído de indústrias de redes, ou seja, indústrias que dependem da implantação de malhas para alcançar o consumidor. Como tal perpassam os vários segmentos da sociedade, provocando diferentes entendimentos de cunho técnico, político, ideológico, que afetam os negócios em vigor ou planejados.
Nesse sentido, a complexidade na estruturação dos modelos de organização das indústrias que se estruturam sob uma concepção de rede exige, por parte dos governos, um cuidado especial. As mudanças na regulação vigente nessas indústrias exigem um processo de amplas negociações entre os agentes, buscando configurar estratégias de longo prazo no rumo mais acertado possível.
Quando novas regras causam insegurança entre os vários agentes e são contestadas por muitos especialistas, muitas vezes com interesses e ideologias contrárias, é um sinal de que o setor em questão pode estar em rota de desestruturação.
Um bom exemplo da indústria de rede é a elétrica. Tal indústria tem como importante característica a necessidade de manter um equilíbrio premente entre a oferta e a demanda, muitas vezes de difícil previsão e tendo, também, como outra característica, as dificuldades de estocagem. A indústria elétrica sempre teve o Estado como um ator de destaque seja como regulador, planejador ou empresário. Como tradicionalmente o serviço de energia elétrica era considerado monopolista, o Estado estava à frente por meio de concessões reguladas por ele e/ou outorgadas ao setor privado.
Nesse contexto, no caso brasileiro, os primeiros marcos regulatórios legais que regeram a indústria elétrica definiram que o fornecimento da energia elétrica era um serviço público sob regime de concessão ou permissão. Os especialistas e responsáveis pela estruturação do setor elétrico brasileiro entenderam que o país tinha singularidades como a existência de rios com grande volume de água, caudalosos e de planalto. O país de clima tropical, com condições meteorológicas particulares, com chuvas torrenciais, sazonais e com diversidades hidrológicas que possibilitavam a não coincidência desses períodos, favorecia a construção de usinas hidrelétricas. Essas particularidades levaram os técnicos a planejarem usinas com reservatórios que fossem capazes de “guardar” energia para os anos futuros. Os relatórios das consultorias técnicas também apontavam para a necessidade de uma malha de transmissão bem estruturada, pelas dimensões do país, sobretudo pelas distâncias das fontes ao consumo.
Nos anos 50, no âmbito da estruturação do setor elétrico, o entendimento foi que essa indústria com características de monopólio natural deveria ter um planejamento da expansão com forte interação com os critérios estabelecidos pela operação do sistema. Qualquer inconsistência metodológica entre planejamento e operação afetaria os objetivos do setor. Ainda as experiências internacionais, sobretudo vindas da America do Norte, apontavam que um segmento importante era o da montagem e fornecimento de equipamentos de geração, telecomando, transmissão e distribuição. Como tal, a manutenção industrial de qualidade era considerada como uma prática obrigatória para as empresas buscarem os padrões de excelência mundiais. Os manuais das empresas estatais traziam ensinamentos das tradicionais empresas de eletricidade americanas. Continham indicações que os instrumentos, equipamentos e máquinas de processos em geral deveriam ser planejados e operados com competência, pois trariam resultados econômicos vantajosos para as empresas.
Em decorrência disso, a cultura do setor elétrico foi de preparar equipes de engenheiros e técnicos, bem treinados ao longo dos anos, e compromissados com a segurança do sistema. Os processos de formação das equipes eram estabelecidos dentro de uma estratégia de permanência do funcionário na empresa por muito tempo, exigindo um treinamento contínuo de suas equipes no país e no exterior. O entendimento foi que a capacitação técnica seria um fator preponderante para a segurança do sistema elétrico.
Outro componente importante na estruturação dessa indústria foi à necessidade de promover o desenvolvimento e fortalecimento de empresas privadas de consultorias e projetos, construtoras de grandes obras civis, empresas de montagem de equipamentos elétricos. Para gerenciar e organizar esse complexo leque de agentes, o Estado era considerado como o mais indicado pelo sentido estratégico que essa indústria de rede significaria para o país. Mas os entendimentos e interesses eram diversos e foi assim que a decisão da criação de uma empresa estatal, que fizesse o papel de coordenadora desse processo, levou um período longo que vai desde a Era Vargas até 1962. A decisão do papel do Estado à frente do setor elétrico brasileiro ultrapassou vários governos, pois uma reforma duradoura desse setor exigiu amplas negociações e acordos entre os diversos interesses da sociedade brasileira.
Assim, a decisão de organização da ELETROBRAS foi acordada sob moldes empresariais, após discussões em grupos de trabalho e em debates públicos. O país estava diante de uma realidade difícil e buscava uma solução para proporcionar a expansão do suprimento de energia elétrica e necessitava de uma regulação discutida e acordada entre as varias correntes ideológicas da sociedade. Os tomadores de decisão sabiam que as soluções deveriam ser estruturais e de longo prazo. Apenas pequenos ajustes no quadro institucional existente não conseguiriam vencer os desafios à frente. A nova estruturação da indústria elétrica desse período pode ser chamada de um novo modelo setorial. Afinal nesse período houve um novo papel do Estado que teve a atribuição, através das suas empresas estatais, de planejar a oferta de energia, de coordenar e administrar a construção dos novos projetos e operar as novas plantas de geração e transmissão. Atuou também no segmento de distribuição. Mas, em paralelo, foi propiciado o desenvolvimento de empresas privadas nacionais e a atração de multinacionais fornecedoras de equipamentos para a indústria.
Até o final dos anos 80, o quadro institucional do setor elétrico brasileiro foi estável. Com o desmantelamento da ordem econômica mundial, esse quadro desorganizou-se, provocando, entre importantes estados da federação, uma situação de inadimplência. A base financeira da indústria elétrica se enfraqueceu, sob um pano de fundo de crise econômica mundial, que repercutiu no planejamento nos investimentos públicos dos países emergentes, com novas orientações, inclusive, preconizadas pelas agências multilaterais.
Nesse contexto, o país decidiu implantar algumas ações de política econômica de curto prazo que afetaram o setor elétrico. Destacam-se o uso das empresas do setor para o fechamento do balanço de pagamentos e a contenção das tarifas para conter a inflação. As consequências por tais ações deixaram claro que o uso de uma indústria de rede de tal magnitude como instrumento de política econômica afetou a expansão da oferta de energia elétrica. Configurou-se, assim, uma crise na indústria elétrica brasileira.
Como tal, houve a necessidade de uma reorganização industrial que exigiria um processo de discussão. As soluções padronizadas provenientes de um movimento de liberalização econômica mundial encontravam resistências de alguns grupos de políticos, de especialistas e de representantes da Academia. Assim, uma ampla negociação para uma reestruturação institucional que alcançasse todos os interesses teve percalços, a despeito de esforços de grupos de trabalhos no âmbito do governo, buscando uma revisão institucional. A estratégia dos poderes executivo e legislativo da época foi introduzir novas legislações, modificando a regulação do setor elétrico. Citam-se, como exemplo, o fim do serviço pelo custo e remuneração garantida, a forma de financiamento dos investimentos, as mudanças no regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos com novas regras para outorga e prorrogação das concessões e permissões de serviços públicos. E, ainda, um processo de privatização foi implantado a partir da década de 90, tendo como prioridade inicial no setor elétrico, o segmento de distribuição. Constitui-se, assim, uma reforma na indústria elétrica no Brasil que durou cerca de 12 anos, pois pode-se considerar seu início no ano de 1990 e a manutenção de seu desenho até o final de 2002.
Vale ressaltar que alguns pesquisadores advertiram que uma reestruturação à base de adaptações de modelos de outros países em indústrias de redes com particularidades e características, diferentes daqueles modelos externos poderia afetar o suprimento futuro de energia elétrica. Afinal o setor elétrico brasileiro tinha um parque hídrico atuando na base na curva de carga do sistema , com acumulação de energia futura nos reservatórios, além de possuir uma malha de transmissão responsável por uma parte da oferta de energia. O setor estatal foi esvaziado porque, na reforma, iniciou-se o processo de incentivo à demissão dos seus técnicos, deixando o governo enfraquecido para traçar estratégias e parcerias com o setor privado na velocidade necessária para a expansão da oferta de energia. E o resultado mais significativo foi a crise de oferta em 2001, levando a sociedade a enfrentar sacrifícios com medidas de racionamento de energia.
Nesse contexto, em dezembro de 2003, o Ministério de Minas e Energia apresentou um documento intitulado “Proposta de Modelo Institucional do Setor Elétrico”, definindo o que seria a nova reforma no setor elétrico sobre a que ocorrera a partir da década de 90. A reforma da reforma foi sustentada pelas Leis nº 10.847 e 10.848, de 15 de março de 2004, e pelo Decreto nº 5.163, de 30 de julho de 2004. O principal objetivo apresentado, se é que se pode simplificar dessa forma, foi estabelecer um marco regulatório estável para garantir investimentos para a expansão do sistema elétrico e garantir tarifas baixas para o consumidor. A reforma proposta teve também contestações de especialistas do próprio setor.
Hoje, após 10 anos, o setor elétrico volta a ter questionamentos de toda ordem.
Primeiro a premissa da modicidade tarifária não estava sendo alcançada, o que levou o governo, através da MP 579 de 2012, a antecipar a renovação das concessões de energia elétrica, buscando a redução das tarifas de energia no país. A MP foi convertida na Lei 12.783/2013. O tema trouxe muita polêmica entre especialistas e agentes do mercado que reclamaram da necessidade de mais debates e negociações entre os agentes antes da edição da MP. Atualmente as grandes indústrias que consomem muita energia elétrica em seus processos reclamam que a redução dos preços de energia atingiu, em media, somente cerca de 7 %. As reduções previstas para os demais segmentos como residencial, comercial e uma parte da indústria tiveram os resultados previstos. Mas para tal está sendo necessário o financiamento através da emissão de títulos públicos, o que também vem gerando criticas entre os economistas.
Outro questionamento trata do enfraquecimento do grupo ELETROBRAS. Suas empresas, no bojo da MP 579, tiveram um baque financeiro que inviabiliza as suas parcerias com empresas privadas na participação dos Leilões de Oferta. Para solucionar serão necessários aportes do Governo via BNDES, por exemplo. A antecipação da renovação das Concessões levou as usinas antigas das geradoras, que aderiram à renovação antecipada das concessões, a operarem com custos muito baixos. Essas empresas foram indenizadas com montantes que geraram muitos questionamentos, apontando que tais avaliações foram mal calculadas. Em adição, a Receita Federal decidiu tributar as indenizações pagas a essas empresas. O percentual beira a 35 %, considerando o Imposto de Renda (IR) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre os pagamentos. E, ainda, a exemplo do ocorrido em governos anteriores, as empresas do Grupo ELETROBRAS vêm incentivando seus profissionais a se aposentarem, o que certamente vai enfraquecer ainda mais a capacidade técnica, pois, nesses processos de demissão incentivada, os profissionais mais experientes são os que mais aderem, por já terem as condições exigidas para a aposentadoria oficial.
Para complicar mais o debate, há questões no âmbito técnico. A demanda de energia elétrica cresce, os níveis dos reservatórios caem e as usinas térmicas são chamadas a operarem para resolver o desequilíbrio de oferta e demanda. Nesse contexto está a discussão das hidrelétricas com reservatório na Amazônia com seus entraves técnicos e ambientais. Afinal mais de 50% do potencial hidrelétrico na Amazônia já foi explorado e não há um “clima” político para defender mais reservatórios plurianuais. Para manter a segurança energética, mais térmicas necessitam entrar no cardápio de opções do Operador Nacional do Sistema. O combustível para alimentar essas usinas térmicas, que naturalmente deveria ser o gás natural, enquanto novas hidroelétricas e outras renováveis não aumentem a sua participação na matriz, não é competitivo. Pelo menos no momento. Para gerar, então, na base, sem intermitência, o planejamento terá que voltar para as opções existentes dentro das tecnologias disponíveis: carvão e energia nuclear. O mercado das tecnologias “verdes” já levanta suas críticas.
Eis que o setor encontra-se em uma encruzilhada. Gerar com térmicas é mais caro do que gerar com hidrelétricas. Atendendo à regulação vigente, as Concessionárias de distribuição têm que arcar com esses custos que serão repassados, quando das revisões tarifárias a cada 12 meses, ou seja, as empresas distribuidoras têm que despender esses montantes, antes de repassarem aos consumidores. Vale lembrar que a situação do sistema ficou tão critica que todas as usinas térmicas chegaram a ser despachadas, gerando um custo para as distribuidoras de muitos bilhões de reais. No presente mês de setembro, o ONS já indicou que o nível dos reservatórios na região nordeste está baixo e que o sistema deve poupar a água dos reservatórios, aumentando a geração com Térmicas.
Nesse contexto foram definidas novas regras que virão em 2014, as chamadas bandeiras tarifárias. Quando os reservatórios estiverem com poucas reservas, a partir de determinados níveis, a fatura de energia elétrica indicará, com uma bandeira de determinada cor, o aumento da conta que vai variar, a cada 100 kWh consumidos, de cerca de R$ 1,5 a R$ 3 adicionais. Mais críticas já ocorrem sobre esses novos ajustes pontuais na regulação do setor.
Por fim, nesse exercício de flanar pelas idiossincrasias do setor elétrico vale chamar a atenção de que a ANEEL, através de seu diretor-ouvidor, afirmou pela imprensa que o modelo de leilões atual está “próximo do estado de saturação”. Segundo o diretor, “o formato de concorrência nos últimos 10 anos viciou o processo”.
Pode estar se avizinhando a Reforma da Reforma da Reforma do setor elétrico brasileiro.
Queira ou não este ou qualquer outro governo. No setor elétrico, as reformas são como o pulo do sapo. Não são feitas por gosto, mas por necessidade.
*Renato Queiroz é professor e pesquisador do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Energia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Artigo publicado no Infopetro, blog do GEE/UFRJ (http://infopetro.wordpress.com/)