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Conhecimento de ocupação das áreas de mananciais está com o setor privado

Assessoria de Comunicação do CEM - 15 de fevereiro de 2019 1001 Visualizações
Conhecimento de ocupação das áreas de mananciais está com o setor privado
Construções nas margens da represa Billings, que é um dos principais reservatórios de água da Região Metropolitana de São Paulo – Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil
 
Estudo revela uma tendência que se instaurou na política pública de urbanização de favelas nos anos 1990: a retirada, dos governos municipal e estadual, grande parte do conhecimento acumulado sobre o entorno de mananciais como os das represas Billings e Guarapiranga, uma parte importante das cidades da Região Metropolitana de São Paulo. Esse conhecimento, presente em documentos que vão de projetos, mapas, até dados estatísticos sobre as famílias que vivem nessas regiões, é fundamental para o planejamento e execução da política pública, mas está, em grande parte, acumulado nos escritórios e nas experiências dos profissionais de empresas privadas chamadas gerenciadoras. A pesquisa, do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e da Universidade Federal do ABC (UFABC), foi divulgada na Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.

Magaly Marques Pulhez, pesquisadora do CEM e professora do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Luciana Nicolau Ferrara, professora do Bacharelado em Planejamento Territorial do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da UFABC, analisaram os circuitos de conhecimento estabelecidos entre a gestão pública e as empresas privadas durante a execução do Programa Guarapiranga, que posteriormente mudou para Programa Mananciais.

Esse programa foi desenvolvido entre 1992 e 2016, com o objetivo de prover de redes de saneamento e outras infraestruturas os assentamentos precários ou favelas localizados no entorno das represas Billings, Guarapiranga e do Alto Tietê e melhorar a qualidade da água dos respectivos mananciais. Envolveu as prefeituras, como a Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo, por exemplo, e diversos órgãos do governo do Estado.

Para a execução desse tipo de programa, se tornou frequente a contratação das gerenciadoras. Ao contrário das construtoras (focadas nas obras de edificação) e empreiteiras (direcionadas para obras de infraestrutura), são pouco conhecidas do grande público, mas estão muito próximas dos órgãos de planejamento e administração do setor público. “São contratadas para gerenciar o desenvolvimento de um programa em seu cotidiano, dando uma espécie de apoio administrativo para que o programa possa acontecer”, explica Magaly.

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Represa Guarapiranga – Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil
 
As gerenciadoras, por exemplo, controlam a contratação de outros terceirizados e os cronogramas de execução dos serviços. “Fazem a intermediação entre o Estado, o poder público, outros terceirizados e a área objeto de intervenção”, acrescenta. O escopo de atuação das gerenciadoras se ampliou ao longo dos anos, e hoje elas fazem inclusive o gerenciamento social, processo de mediação com a população da área que passará pelo processo de urbanização. Essa atividade envolve mapear, identificar e acompanhar as famílias que precisarão ser retiradas de suas casas, mesmo depois do processo de remoção.

Segundo Luciana, que estudou o Programa Mananciais em seu doutorado, foi possível constatar aspectos positivos e negativos no processo de contratação de gerenciadoras. “Percebemos, a partir do Programa Mananciais, que isso permite ao poder público, dentro de um momento de recessão, de crise, tocar alguns contratos com recursos que ainda se tem”; ou ainda, “desenvolver um conjunto de ações e subcontratações dentro dos chamados contratos guarda-chuva, sem os quais a contratação em separado de cada serviço seria mais difícil por parte da prefeitura”, aponta. “Por outro lado, muito do conhecimento sobre esses projetos, que foi um dos temas centrais do nosso estudo, fica nas mãos dessas empresas gerenciadoras”, diz.

Desde as informações técnicas sobre os contratos com os terceirizados até os dados atualizados sobre os territórios, como os mapeamentos dos áreas dos lotes, suas populações e suas demandas, esse conhecimento fica, em grande parte, nas mãos das gerenciadoras. “No entanto, são informações básicas, essenciais para a política pública, que precisa ser monitorada no curto, médio e longo prazo. Como [a prefeitura] vai estabelecer esse controle sem informação?”, questiona.

Magaly lembra que, quando o poder público passa boa parte desse arcabouço de informações exclusivamente para um terceirizado, fica absolutamente dependente deste. “Então é preciso, ciclicamente, renovar o contrato com essas empresas, um processo de alto custo”, completa. “Nosso questionamento não se dá sobre os profissionais ou as empresas, mas sobre esse modelo, que nos traz uma determinada lógica que coloca o Estado refém e em um lugar de regulação que não conseguimos definir exatamente qual é”, ressalta.

Porta de entrada para gerenciadoras na política urbana
 
Magaly estudou em seu doutorado e pós-doutorado a gestão dos projetos de urbanização no Estado de São Paulo. “Ela tem desenvolvido análises inovadoras que exploram o tema muito pouco estudado das gerenciadoras e empresas de engenharia consultiva e constrói uma ponte analítica entre os estudos sobre a profissão de arquiteto e suas práticas (tema tradicional no campo da arquitetura) com os estudos sobre políticas públicas e sobre a economia política do setor de consultoria em cidades brasileiras”, destaca o vice-coordenador do CEM, professor Eduardo Marques, que foi supervisor da pesquisadora no pós-doutorado.

Ela constatou que as gerenciadoras, nascidas como firmas e escritórios de projetos nos anos 1930-1940, se consolidaram nos anos 1960-1970, mas entraram mais firmemente no mercado de empreendimentos habitacionais na virada dos anos 1980-1990, quando houve o colapso da política centralizada em nível federal que abriu espaço para atuação mais direta de Estados e prefeituras.

As gerenciadoras estão presentes na gestão do município de São Paulo desde pelo menos os anos 1990. “O projeto Guarapiranga, que depois vira Mananciais, foi praticamente a porta de entrada dessas empresas, quando começaram a atuar mais fortemente nesse ‘nicho de mercado’ que é a política habitacional”, destaca.

Contribuíram para abrir esse espaço para as gerenciadoras a forma como o programa foi estruturado, dividido em grandes lotes de obra e em unidades de gerenciamento, e o tipo de financiamento, a maior parte internacional, vindo do Banco Mundial, em uma época na qual não existiam financiamentos federais significativos para urbanização de favelas e faltavam recursos para prefeituras e governos estaduais.

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Represa de Taiaçupeba, na bacia hidrográfica do Alto Tietê – Foto: André Bonacin via Wikimedia Commons / CC BY 3.0
 
O banco fazia várias exigências para o tomador do empréstimo, estabelecendo grandes metas de atendimento, saneamento, urbanização, segundo Luciana. “A empresa privada veio antes mesmo da assinatura do próprio contrato, a presença de uma instância de gerenciamento é uma exigência prévia do banco financiador”, explica Magaly. O banco definiu em contrato as normas para contratação de consultores terceirizados, incluindo o perfil das mesmas, influindo fortemente no processo.

Ao lidar com territórios complexos como os das favelas, elas adquiriram um conhecimento técnico importante, que utilizam para ampliar seus negócios. “Os projetos de urbanização de favela vão virar vitrine para as empresas envolvidas, de forma geral”, destaca Magaly. De posse de tanta informação, elas construíram seus negócios e, hoje, prestam serviços também para outras empresas privadas fazendo, por exemplo, diagnósticos ambientais, mediação de conflito social, plano de bacias hidrográficas, entre outros tipos de trabalhos.

As pesquisadoras observam o quadro atual da política pública de urbanização de favelas com preocupação. No governo federal, o assunto saiu da pauta. “Notamos uma prioridade da atual gestão do Estado e da prefeitura para as parcerias público-privadas, mas o mercado não vai investir em algo que não lhe dá retorno”, diz Magaly. “São obras grandes, precisam de investimento maciço, e sempre com dependência muito grande de recurso federal. Os municípios não têm capacidade de investimento, mesmo São Paulo, que, em tese é um município com muito mais recursos do que outros”, completa. “É fundamental investirmos na urbanização de favelas porque a precariedade dos assentamentos é enorme, a desigualdade socioambiental é muito grande, as pessoas estão vivendo muito mal, e observamos um recuo dessa política nos últimos anos”, finaliza Luciana.

O estudo, publicado na Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, pode ser acessado no site oficial da publicação.