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São Paulo entra na rota internacional da seca

infraroi.com.br - 20 de janeiro de 2015 1534 Visualizações
São Paulo entra na rota internacional da seca
O centro de Campinas, a segunda maior cidade de São Paulo, é um lugar à parte no cenário de crise hídrica que assola boa parte do estado. Sem racionamento, as torneiras emitem apenas o som tranquilo da água corrente. A razão da abundância, infelizmente, esconde um perigo. Segundo a própria concessionária local, se o abastecimento da região for interrompido, a pressão da volta do sistema seria suficiente para arrebentar a infraestrutura envelhecida da rede de distribuição. Em outras partes do município – mais distantes e altas ou que tenham a infelicidade de combinar os dois fatores – o drama aumenta. A segunda-feira, 20 de outubro, resumiu o tom do problema, quando praticamente 40% da cidade ficou sem água. A crise hídrica, de fato, chegou.
De acordo com o Ministério Público Estadual, a tragédia foi anunciada, mas não tem data para acabar. As estimativas positivas indicam que a crise começaria a melhorar no final de 2015. Uma reportagem do site brasileiro da BBC estima que o estado precisa – até 2020 – de dois outros sistemas de abastecimento similares ao da Cantareira, um investimento de R$ 4 bilhões. Não contente com a má gestão dos recursos que detém, São Paulo quer interligar – a um custo de R$ 500 milhões – a represa de Jaguari à Cantareira, o que poderia afetar o rio Paraíba do Sul e mais de 180 cidades paulistas, fluminenses e mineiras. Enfrenta, como era de se esperar, a resistência federal e dos vizinhos.
Apesar de preocupante, a falta de água não é um fenômeno isolado e nem regional. A professora norte-americana Karen Piper viajou o mundo inteiro, coletando dados sobre a atuação das concessionárias de saneamento e sua visão é alarmante. Ela acaba de lançar The Price of Thirst – Global Water Inequality and the Coming Chaos (O Preço da Sede – a desigualdade global da água e o caos anunciado, numa tradução livre). Piper compara as empresas privadas que exploram os serviços de saneamento à irmandade da indústria do petróleo. Resultado de sete anos de peregrinação por vários países, a pesquisa não conta pontos a favor das empresas do setor. Pode-se até dizer que Piper não é exatamente uma especialista no setor, pois ensina literatura inglesa na Universidade de Minnesota, mas essa dúvida não paira sobre Fred Pearce, autor de When the rivers run dry (Quando os rios secam), publicado em 2006 nos Estados Unidos.
 
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Ex-editor da revista New Scientist, Pearce é um jornalista científico respeitado, formado em Cambridge e colaborador de jornais como Guardian e Boston Globe. Há mais de 20 anos, ele escreve sobre assuntos relacionados aos recursos hídricos e When the rivers run dry é, de certa forma, um filme de horror. O livro mostra, entre outras coisas, que a água não está exatamente onde mais se precisa dela. Vide o caso brasileiro: São Paulo vive um momento literalmente árido, enquanto populações ribeirinhas do Amazonas nem fazem ideia do que seja uma crise hídrica. No Canadá, 10% da população está concentrada próxima a 90% da água potável do país. Do outro lado do mundo, na Índia, existem plantações irrigadas com efluentes químicos ou com esgoto não-tratado. Felizmente, o autor não aponta casos onde as duas “soluções” coexistem.
Dois terços dos grãos produzidos pelos indianos seriam irrigados com água subterrânea, cuja exploração predatória ameaça colapsar as fontes. Segundo Pearce, os poços de Gujarat, no norte do país, tinham cerca de 11 metros de profundidade há mais de 50 anos. Hoje, as novas tubulações precisam ser empurradas quase 400 metros para encontrar água. O problema não é somente de perfuração, mas também os riscos de encontrar elementos perigosos pelo caminho. O maior envenenamento em massa da história da humanidade foi a ingestão de água com alto teor de arsênico nos poços cavados em Bangladesh e no oeste da Índia. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a tragédia envolveu dezenas de milhões de pessoas. Ironia da história: na pequena localidade indiana de Semria Ojha Patti somente os chamados intocáveis – ou dalits – escaparam do envenenamento. Em função da divisão de castas, eles foram proibidos de beber da água, pois são considerados impuros. Levaram a melhor.
Se os países mais pobres recorrem a soluções desesperadoras, alguns dos mais ricos espelham a loucura de seus líderes. Na década de 1980, os sauditas gastaram US$ 80 bilhões para furar poços e chegar aos aquíferos do deserto. A meta? Produzir trigo, a uma taxa de consumo de água três vezes maior do que a média dos países tradicionalmente produtores. Kadafi, o falecido ditador da Líbia, foi o autor de outro projeto megalomaníaco, considerado na época a maior obra de engenharia civil do mundo. Em 1991, ele inaugurava a primeira fase – 960 km – de um rio artificial, cuja fonte era o gigantesco aquífero Núbio. Distantes cerca de 1,4 mil km da capital Trípoli, os recursos foram movimentados por meio de uma obra que custou US$ 27 bilhões. A produção de água foi pífia, mas a Líbia amargou 20 anos de suas economias da exportação de petróleo para pagar a fatura. Construtora do empreendimento, a Brown & Root nada mais era do que subsidiária europeia da norte-americana Halliburton, então proibida de negociar com os líbios. O impedimento acontecia em função do embargo anglo-americano, causado pelas redes subterrâneas – não de água, mas de terrorismo – do coronel líbio.
A luta pelo recurso hídrico também causou a primeira batalha do gênero, segundo Pearce. A Guerra dos Seis Dias, envolvendo Israel e seus vizinhos árabes pelo controle do rio Jordão, pautou a luta vencida pelos israelenses. Eles ocuparam as Colinas de Golan, onde nasce um dos dois rios que são a fonte do Jordão. Israel, aliás, figura negativamente no livro ao restringir o acesso dos palestinos aos aquíferos em regiões limítrofes como West Bank. Mas mesmos israelenses que dominam as modernas técnicas de dessalinização da água do mar. Londres, por exemplo, recorreu à tecnologia para minimizar sua própria crise hídrica, cujo pico ocorreu em 2006. A um custo de 270 milhões de libras, os ingleses construíram uma usina que fornece água potável a 1 milhão de habitantes (a cidade tem 8,3 milhões). Apesar dos avanços nas soluções de filtragem da água salina, a opção não seria exatamente prioritária para resolver o drama paulista. A crise do estado – mais do que econômica ou técnica – é um apagão de gestão. Razão a mais para ouvir – com certo deságio – os viajantes experimentados como Pearce.
 
Por Nelson Valêncio