Diante da emergência climática global, pesquisadores e governos de vários países ao redor do mundo investigam e analisam as melhores tecnologias para gerenciar e tratar a grande quantidade de lixo produzida nas cidades, que tem crescido de forma expressiva inclusive no Brasil. Segundo o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, a principal parte do material sólido descartado nos centros urbanos brasileiros – 45,3% do total -- é composta pela fração orgânica, que abrange restos de alimentos e vegetais. Uma maneira de tratar essa parcela do lixo é com biodigestores, que, ao mesmo tempo em que recuperam os nutrientes dos restos produzindo fertilizantes, podem auxiliar no cumprimento de metas de emissão de carbono, evitando a liberação de gases de efeito estufa na atmosfera, e produzindo biogás.
Uma análise comparativa entre duas tecnologias de biodigestores para o tratamento da fração orgânica dos resíduos sólidos urbanos indicou vantagens de se utilizar um digestor anaeróbio seco, em contraposição com um digestor anaeróbio úmido. Os detalhes do estudo de dois casos -- que avaliou pontos como fluxo de água, nutrientes e eficiência energética -- acabaram de ser publicados em artigo na revista Bioresource Technology Reports.
“O sistema seco é mais simples, não tem tantos motores, usa menos água, produz 2,5 vezes mais biofertilizante que o sistema úmido, é mais eficiente em relação à energia, porque utiliza internamente menos energia do biogás produzido, e pode mitigar mais gases de efeito estufa”, diz o engenheiro civil mexicano Rodolfo Daniel Silva Martínez, primeiro autor do artigo. O trabalho, que contou com o apoio do Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI), é um desdobramento da investigação para a sua tese de doutorado defendida em 2021 na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP).
A comparação foi feita com duas plantas-piloto. Uma instalada na Estação de Transbordo da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb), no bairro do Caju, no Rio de Janeiro (RJ), que adota o sistema seco para produzir adubo e biogás a partir dos resíduos orgânicos, usando uma tecnologia desenvolvida pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em parceria com a Methanum Tecnologia Ambiental e a Comlurb. Outra que adota o sistema úmido e utiliza o resíduo orgânico gerado pelos restaurantes da usina hidrelétrica de Itaipu, em Foz do Iguaçu (PR), além de parte da poda da grama e de outros materiais enviados por entidades parceiras, para produzir biometano e biofertilizante que é usado como adubo nos canteiros da usina. Nessa unidade, a tecnologia também é brasileira.
Segundo os autores do artigo, os sistemas de digestão anaeróbia seca (realizada sem a presença de oxigênio e teor de sólidos totais de 20% a 40%) têm sido estudados e implementados ao redor do mundo nas últimas duas décadas, principalmente na Europa, mas são poucas as unidades em funcionamento nos países emergentes, como o Brasil. A maior parte da matéria orgânica residual gerada nos municípios brasileiros é encaminhada para aterros sanitários ou lixões, segundo o Plano Nacional de Resíduos Sólidos. Embora os aterros sanitários sejam uma forma ambientalmente mais adequada de destinar o lixo orgânico (em comparação com os lixões), ainda assim são uma fonte importante de emissão de metano. Ainda que alguns aterros tenham um sistema de captação do biogás no local, o sistema não é eficiente, afirma Martínez.
Tanto o sistema seco como o úmido de digestão são eficientes para a produção de gás e fertilizante, mas o estudo apontou vantagens do primeiro. “Embora o sistema úmido produza uma quantidade maior de biogás, ele também consome mais energia para funcionar”, explicou o pesquisador. A pesquisa dele, contou, vai ao encontro de estudos europeus, onde o processo já foi bastante estudado e é aplicado em várias cidades. “Na Alemanha, por exemplo, já há uma obrigação das cidades em fazer a separação dos resíduos e eles dão o tratamento adequado, seja em composteiras ou em digestores anaeróbios – na maioria usando o sistema seco --, porque são proibidos de lançar o resíduo orgânico em aterros”, disse Martínez.
No artigo, os pesquisadores detalham que no estudo brasileiro o sistema úmido utiliza 83,5 litros de água por tonelada de resíduo tratado, enquanto o seco dispensa o acréscimo do líquido. Enquanto o sistema seco produz 223 quilos de biofertilizante por tonelada de material, o úmido produz 100 quilos por tonelada. O sistema seco de digestão anaeróbia “prova ser uma solução adequada para as condições brasileiras e oferece diversos benefícios tangíveis para tratar os resíduos sólidos urbanos”, escreveram os autores do artigo, que também é assinado por Alessandro Sanches-Pereira, Bernardo Ornelas-Ferreira, Breno Carneiro-Pinheiro e Suani Teixeira Coelho, professora da USP e pesquisadora do RCGI.
“A nossa intenção, com esses resultados, é buscar dar um pouco mais de ênfase à importância da tecnologia seca, para que o setor privado e o público se interessem mais por ela e o setor consiga mais apoio”, afirmou Martínez. “A usina no Caju, no Rio de Janeiro, é um caso único na América Latina e deveria ter um pouco mais de atenção e de apoio. Por enquanto, esse tipo de tratamento não é obrigatório, mas no longo prazo, daqui a 10 ou 20 anos, talvez tenha que ser. É melhor apoiar agora essas tecnologias.”