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Transdisciplinaridade na construção dos territórios públicos urbanos: conversões

Artigo de Ana Carolina Ferreira Mendes, publicado no VitruVius - 13 de novembro de 2013 1907 Visualizações
Transdisciplinaridade na construção dos territórios públicos urbanos: conversões
 
O Elevado Costa e Silva foi construído na década de 1960 (1), em São Paulo, desenvolve-se em 3,5km e é usado durante a semana como conexão viária entre as zonas Leste e Oeste; nos finais de semana é usado de modo marginal como área pública de lazer.
O High Line foi construído na década de 1930 em Nova York, em bairros então industriais, tendo por finalidade o transporte eficiente de mercadorias. Tem cerca de 3,0 km de extensão, ficou abandonado por mais de 40 anos e recentemente foi reestruturado por meio de projeto dos escritórios Diller Scofidio + Renfro e James Corner Field Operations, que em uma operação de 3 fases o converteu em um parque. O grande impulso inicial à reestruturação foi a criação da organização Friends of the High Line (FHL), em 1999, por moradores da vizinhança que em sério estudo levantaram todas as possibilidades de uso ao High Line (2).
Ambos são considerados vetores de transformação urbana, negativas e/ou positivas. As divergências e convergências a seguir entre os objetos de estudo devem ser lidas considerando de três premissas.
A primeira premissa é a de que a cidade como território constantemente se desarticula e se reconstitui – conjectura-se a cidade como um palimpsesto (3). Ao invés de planos extensivos, defendemos uma postura menos totalizadora dos problemas urbanos, como uma acupuntura urbana (4).
A segunda premissa diz respeito à transdisciplinaridade na construção dos territórios urbanos: espaços como resultado de uma série de disciplinas externas à arquitetura que imbricadas culminam na transformação das cidades.
A terceira premissa nos traz os objetos como itens comparáveis, tanto fisicamente, dadas suas similaridades em relação ao território criado (morfologia elevada e dimensões parecidas), como historicamente, dadas suas sobreposições de temporalidades e re-significação do território através da conversão de usos, a cada domingo no caso do Elevado, ou após a implantação do parque, no caso do High Line.
 
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Temporalidade e paisagem
A transformação ao longo das décadas das bordas do Elevado, para além da presença de sua estrutura em pleno uso, está associada à degradação da região central da cidade. Enquanto o Elevado se instalava e se consolidava como conexão viária, novos centros financeiros formaram-se, na região da Paulista, Berrini e Faria Lima. O mercado imobiliário, tanto comercial quanto habitacional, foca sua atenção nessas novas áreas e, de certo modo, o poder público volta suas ações a esses novos territórios (5).
A transformação da paisagem do High Line e de seu entorno ao longo dos anos se deu essencialmente por uma mudança de ciclos econômicos pelo qual a cidade e o próprio país de modo geral passavam – do modelo sobre trilhos para o modelo sobre rodas, culminando no abandono da estrutura por décadas.
Observamos na defesa pela demolição do Elevado uma postura essencialmente nostálgica. Para as pessoas que viveram o antes e o depois, a demolição se refere justamente a quão melhor esse território era antes da presença do Elevado.
No caso do High Line o desejo de mudança do lugar não nos parece ter origem no saudosismo dos usos passados, mas sim em um latente desejo de transformação que aquela estrutura inspirava com sua história:
“Inspired by the melancholic, unruly beauty of this postindustrial ruin where nature has reclaimed a once-vital piece of urban infrastructure, the new park will be an instrument of leisure, a place to reflect about the very categories of 'nature' and 'culture' in our time” (6).
Em uma hipótese de classificação com base no conceito de fratura urbana estudado por Carlos Leite (7), identificamos o Elevado como uma fratura territorial: desde a sua construção, rompeu-se a capilaridade existente entre os bairros, forma-se uma faixa desvalorizada em relação às frentes dos prédios que se voltam ao Elevado e desvaloriza-se o térreo, tornando-o uma área de sombra.
O High Line pode ser lido mais como uma fratura temporal: tendo sido conexão ferroviária, perdeu sua função, e até o momento de sua conversão em parque, permaneceu como um objeto esquizofrênico na metrópole; um resquício da era industrial em meio à metrópole financeira.
Terrain vague, liberdade e marginalidade
No Elevado, a partir do Centro, perspectivas cada vez mais amplas da cidade são vistas, culminando no ponto no qual cruza com a Avenida Pacaembu, onde se revelam todas as camadas desse trecho da cidade. A cota vertical é livre em toda sua extensão. No térreo, no entanto, toda a continuidade é quebrada; enormes pilares de concreto fragmentam o canteiro central, e se instala um terminal de ônibus, dificultando usos além da circulação de pedestres.
O High Line cruza três bairros da cidade, atravessando quadras ao meio e adentrando prédios. Após a implantação do parque, os bairros originalmente industriais, se fortalecem como locais de vanguarda, abrigando para além do uso residencial, galerias de arte, restaurantes e butiques de moda.
O conceito de terrain vague (8) nos é útil em uma leitura possível desses territórios, bem como nas possibilidades de intervenções que daí decorrem.
A percepção do Elevado como um terrain vague decorre da subutilização do território da cota inferior, bem como da utilização espontânea da cota superior aos domingos. Compreende-se, em uma interpretação do conceito original, um terrain vague permanente na cota inferior e um terrain vague temporário na cota superior. Identifica-se o High Line como terrain vague nos anos de abandono: uma estrutura anacrônica na realidade na qual se inseria. O novo parque, assim, representa uma possibilidade de intervenção em terrain vague.
A reciclagem desses locais na cidade passa por uma compreensão mais artística/ filosófica da realidade que nos rodeia. A mesma característica que desqualifica o espaço urbano, de modo instigante o qualifica para outras possibilidades em sua compreensão. O documentário Elevado 3.5 (9) nos mostra esse fato, ao mostrar o dia a dia de habitantes das bordas do Elevado.
Segundo Solà-Morales, a princípio parece lógico introduzir mudanças radicais para fazer com que o terrain vague faça parte da cidade. Porém, estes não podem se sujeitar ao planejamento convencional que incita sua reintegração, pois isto anularia o valor de sua vacância e ausências; estes devem ser lugares de memória e ambiguidade.
Os espaços no Elevado são produzidos pelo uso, sem qualquer suporte projetual e nesse sentido, em uma leitura possível, toda marginalidade – à margem do permitido, do aceitável, da exclusão – se expressa na real liberdade de ser, justamente pela diversidade que acolhe.
No novo High Line, é medida de sucesso justamente a diversidade de programas proposta, como áreas de descanso com grandes bancos, áreas de apresentação a céu aberto e diferenciações de níveis em áreas de contemplação, obtendo diferentes visuais da cidade. Pela diversidade programática, serão atraídos diferentes públicos, abrindo-se mais possibilidades de uso e apropriação. O lugar se torna um território livre.
Considerações finais
Não pretendemos negar os erros do momento primeiro da idealização do Elevado, ou de sua presença degradante nos dias de hoje, pois é visível a degradação que ajudou a causar em seu entorno. Nem mesmo pretendemos idealizar um suposto modelo no projeto de conversão do High Line, pois essa estrutura em oposição ao Elevado, há décadas estava sem função. Fica claro, contudo, que não apenas pela demolição encontra-se a renovação.
É excessivamente simplório ater-se à dualidade demolir/ manter. Podemos dizer que a linha na cota elevada é uma constante, mas seu entorno definitivamente não. É instrumento do planejador perceber as nuances dos usos nestes espaços, reconhecendo também meios mais subjetivos de percepção da realidade, como a arte, o cinema e a fotografia, a fim de compreender o que estes espaços mutantes das metrópoles podem nos trazer de novo.
Pela reestruturação do High Line, vemos que é viável reinserir estruturas desse porte nas cidades. Pensando localmente (em cada quadra, cada acesso, cada edifício do entorno – como uma acupuntura urbana) e ao mesmo tempo globalmente (considerando todas as disciplinas que contribuam à transformação) torna-se um pouco mais próxima, apesar de complexa, a reinserção do Elevado na trama urbana.
O presente estudo não pretende ter uma conclusão ou definição, mas apenas abrir um leque de conceitos e situações a fim de embasar opiniões. Nesse sentido, procuramos informar supostas bases e investigá-las de maneira a subverter a opinião comum de que o Elevado deve ser demolido.
Nota
Este artigo foi desenvolvido com base na monografia apresentada aos professores Mario Figueroa e Ligia Nobre, no Curso de Pós Graduação Lato Sensu O Projeto de Arquitetura na Cidade Contemporânea na Universidade Presbiteriana Mackenzie – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, em 2011.
Bibliografia
1 - Para história do Elevado ver: MARTINS, Luciana Bongiovanni. Elevado Costa e Silva: processo de mudança de um lugar. Tese de Mestrado, São Paulo, FAU-USP, 1997.
2 - Os estudos foram consolidados em: Reclaiming the High Line. Design Trust for Public Space inc. 2002.
3 - Para palimpsesto ver a Parte I capítulo 4 de HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
4 - Para acupuntura urbana ver: SOLÀ-MORALES, Manuel de. De cosas urbanas. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2008.
5 - Candido Malta Campos insere a degradação das bordas do Elevado na história da área central da cidade em: ARTIGAS, Rosa; MELLO, Joana; CASTRO, Ana Claudia. Caminhos do Elevado. Memória e projetos. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008.
6 - Designing the High Line - Gansevoort Street to 30th Street. Friends of the High Line. 2008, p. 31.
7 - SOUZA, Carlos Leite de. Fraturas urbanas e a possibilidade de construção de novas territorialidades metropolitanas: a orla ferroviária paulistana. Tese de Doutorado, São Paulo, FAU-USP, 2002.
8 - SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Territorios. Barcelona: Gustavo Gili, 2003.
9 - Elevado 3.5. Documentário. Direção: João Sodré, Maíra Santi Bühler e Paulo Pastorelo.
Ana Carolina Ferreira Mendes é graduada (2007) e pós-graduada (2011) pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestranda pela mesma instituição, tem particular interesse por morfologia urbana e paisagens urbanas pré-existentes. É sócia do escritório paulistano Biselli+Katchborian desde 2008.
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