No Brasil, a intensificação da construção de grandes hidrelétricas coincide com o início da ditadura militar. Basicamente, a geração de energia era uma das premissas para alavancar o desenvolvimentismo. A abundância de grandes rios, com enormes potenciais hidrelétricos, e a existência de vastas “regiões não habitadas” foram alguns dos argumentos utilizados para legitimar os projetos hidrelétricos. Neste período, foram construídas diversas usinas como Itaipu, Tucuruí, Balbina e Samuel, as três últimas no bioma Amazônico. Além das hidrelétricas, diversas estradas foram construídas, terras doadas a grandes empresários nacionais e internacionais e enormes contingentes de imigrantes foram atraídos para a viabilização desse chamado “desenvolvimento” regional do norte do país. Em contrapartida, as consequências reais deixadas por esse “progresso” trazido do sul foram as chacinas de enormes contingentes indígenas, a apropriação de grandes extensões de terras por grileiros, o desmatamento da vegetação nativa e a exportação de (in)esgotáveis montanhas de minérios. Nesse período de terror e de supressão dos direitos individuais e coletivos, a concepção vigente de tratamento aos atingidos por barragens era a patrimonialista, embasada no Decreto-lei nº 3.356 de 1941. Segundo esse decreto, somente os proprietários receberiam indenização pela renúncia de sua terra a um projeto hidrelétrico. Todos os demais afetados, como pescadores, meeiros, arrendatários, trabalhadores assalariados e informais seriam excluídos de qualquer política indenizatória. Desde então, com a criação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), e a consequente nacionalização da luta dos atingidos, em 1991, luta-se pelo reconhecimento e universalização do conceito de atingido e pela garantia de seus direitos, constantemente violados pelo “progresso” e “desenvolvimento” do capital. Entretanto, após duas décadas do retorno à “democracia”, deparamo-nos com concepções mais retrógradas e conservadoras, vendidas a partir de uma lógica do “desenvolvimento verde”, que as difundidas pelo regime ditatorial brasileiro. A ideia propagada por Luis Nassif, no artigo As usinas-plataforma no rio Tapajós, e difundidas nos últimos anos pelo Ministério de Minas e Energia, são conservadoras e remetem a décadas passadas. Em relação ao “desenvolvimento”, o artigo se equipara ao pensamento de outros tempos, afirmando que as hidrelétricas “historicamente foram ferramentas de desenvolvimento social e regional, proporcionando benefícios às populações residentes”. Em novembro de 2011, o então presidente do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) e Secretário Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, aprovou o relatório elaborado por uma Comissão Especial do CDDPH, que analisou durante quatro anos denúncias de violações de direitos humanos na implantação de barragens no Brasil. Segundo o relatório, “os estudos de caso permitiram concluir que o padrão vigente de implantação de barragens tem propiciado, de maneira recorrente, graves violações de direitos humanos, cujas consequências acabam por acentuar as já graves desigualdades sociais, traduzindo-se em situações de miséria e desestruturação social, familiar e individual”. Foram constatadas violações sistemáticas em 16 direitos humanos básicos, como o direito à informação e à participação; direito de moradia; direito à plena reparação de perdas; direito de ir e vir; direito dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais; direito à liberdade de reunião, associação e expressão; etc. A situação das atingidas é talvez a mais grave. Também segundo o relatório, “as mulheres são atingidas de forma particularmente grave e encontram maiores obstáculo para a recomposição de seus meios e modos de vida; [...] elas não têm, via de regra, sido consideradas em suas especificidades e dificuldades particulares” e, por isso, “têm sido as principais vítimas dos processos de empobrecimento e marginalização decorrentes do planejamento, implementação e operação de barragens”. Mas para além desse falacioso discurso de “desenvolvimento”, Nassif corrobora o argumento do governo que o Complexo Hidrelétrico Tapajós está previsto para ser construído em uma “região não habitada”. Na visão do jornalista e do ministério, as 200 famílias da comunidade do Pimental, por exemplo, simplesmente não existem. Não é mais o caso de negar direitos, mas sim de excluir definitivamente ribeirinhos, pescadores, agricultores e indígenas, que vivem há gerações à beira do Tapajós. Paradoxalmente, o decreto presidencial nº 7.957 instituiu, a partir do dia 12 de março deste ano, o Gabinete Permanente de Gestão Integrada para a Proteção do Meio Ambiente (CGI-MA), que regulamentou a atuação das Forças Armadas na proteção ambiental e apontou as funções da Força Nacional de Segurança Pública na região, para garantir os estudos de viabilidade das hidrelétricas de São Luiz do Tapajós e Jatobá. Ora, por que institucionalizar a atuação da Força Nacional e regulamentar a atuação das Forças Armadas em uma região desabitada? Em uma ação inédita, no dia 28 de março o Governo Federal enviou cerca de 250 membros da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e da Força Nacional de Segurança Pública, com o apoio logístico do Exército Brasileiro, para garantir os estudos de impacto ambiental da Usina Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, na ação cunhada Operação Tapajós. O destacamento avançou contra o território indígena Munduruku, mais precisamente da aldeia Sawré Maybu, que poderá ser alagada por uma das barragens previstas pelo Complexo Hidrelétrico. Desde o início o povo Munduruku se posicionou contra as hidrelétricas no Tapajós, único grande rio amazônico que ainda não contém barramento. Além disso, o argumento que as “usinas-plataformas” não terão implicações ambientais também contradiz outro ato do próprio governo federal. Por meio de várias manobras constitucionais, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Medida Provisória (MP) nº 558/2013, que desafetou dois mil km² de antigas unidades de conservação para a construção de barragens e exploração de minérios em áreas protegidas, principalmente em território indígena. Por fim, enquanto atingidos por barragens, entendemos que para superar os problemas da política energética nacional é necessário superar as visões reducionistas que apontam como saídas a questão tecnológica, diga-se de matriz. O problema central é o próprio modelo energético nacional, a forma como esta organizada a produção e distribuição de energia, que penaliza o povo brasileiro e privilegia os setores rentistas, eletrointensivos e exportadores. Por isso, perguntamos: energia pra quê e pra quem? Atualmente no Brasil, 80% da geração de energia elétrica provêm da hidroeletricidade, nas atuais condições tem sido a forma mais barata de gerar energia. Em compensação, pagamos uma das tarifas mais caras do mundo, perdendo para países com fontes energéticas baseadas na geração nuclear, com preços de produção muito mais altos. Enquanto a taxa de lucratividade no setor tem sido extraordinárias, o povo paga a conta. Em 2009, segundo o professor da USP, Célio Bermann, cerca de 30% da energia elétrica produzida no país foi consumida por seis ramos de grande consumidores industriais – cimento, ferro-gusa e aço (siderurgia), ferro ligas, não ferrosos (alumínio), química, papel e celulose. São produtos que se utilizam de muita energia, geram um grande impacto social e ambiental, não agregam valor e são destinados à exportação. Enquanto nós, consumidores residenciais, pagamos tarifas altíssimas, esses setores da indústria eletrointensiva exportadora pagam o preço de produção da energia que, em alguns casos, chega a ser 15 vezes menor. Por isso, mudanças na política energética nacional tornam-se urgentes e estratégicas. Defendemos um projeto energético popular, com distribuição de riqueza e controle popular! (Cleidiane Santos é militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Tapajós) |