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Arquitetura, indústria da construção e mercado imobiliário ou a arte de construir cidades insustentáveis

Carlos Alberto Maciel – Portal Vitruvius - 17 de dezembro de 2013 2174 Visualizações
Arquitetura, indústria da construção e mercado imobiliário ou a arte de construir cidades insustentáveis
 

Uma coisa que eu acho importante é nós entendermos que no mundo capitalista tudo exige capital. Não existe um arquiteto, que milita numa área de tão grandes investimentos, que acha porque ele é bonito, tem bons olhos ou faz um gesto mais curvo, o capital venha pedir a ele para ajudá-lo. Não. Vocês têm que se preocupar, arquitetos, e eu falo aos jovens que estão aqui, a entender de que maneira vocês vão conseguir uma associação com o capital.
Quando me dei conta, e acreditava que estava preparado para avançar, os bombeiros já haviam definido a altura (70 m), os consultores ingleses a modulação dos pilares (3 automóveis) e os engenheiros a espessura das lajes (35 cm). Com o núcleo central imposto pelas normativas de segurança (2 escadas e 4 elevadores), a largura do edifício saiu do esforço possível que a laje poderia suportar (27 m).
Será que a arquitetura das torres é sempre assim, tipo 'Big Mac'? Siza construindo ao lado, mais esperto, me confirmou que sim. Mas de nada serve lamentar-nos.
A silhueta foi imposta e Alberti (firmitas, utilitas, venustas) definitivamente enterrado. Restava-nos a arquitetura da pele (Herzog tinha razão).
I - Objeto e objetivos
O objetivo deste artigo é analisar a dinâmica da produção corrente de arquitetura inserida no mercado imobiliário, explicitando seus princípios, valores e procedimentos. Busca-se identificar, a partir da observação empírica dos processos de concepção, implantação e comercialização de empreendimentos pela iniciativa privada, princípios, contradições e falhas intrínsecas às lógicas, conceitos e preconceitos que presidem sua realização. Ao explicitar as suas lógicas e contradições, busca-se contribuir para a construção de um arcabouço teórico que permita ao arquiteto um reposicionamento crítico dentro desse sistema, ampliando sua capacidade de atuação para além da elaboração do desenho técnico para aprovação legal de produtos previamente definidos, pavimentando caminhos para práticas alternativas. Como objeto de análise privilegiado toma-se o edifício residencial vertical, que representa a tipologia predominante nas grandes cidades, em especial em suas regiões centrais de maior densidade.
II - Fundamentos do mercado
Na indústria da construção civil a definição de programa, tipologia, tecnologia construtiva e padrão de construção é realizada predominantemente pelos incorporadores e corretores de imóveis. Volumetria, padrões de circulação e aberturas decorrem quase diretamente das legislações de regulação urbana e prevenção e combate a incêndio. Ao arquiteto reserva-se a tarefa de dar um bom aproveitamento da disposição em planta – pré-definida pelo corretor, baseado nos modelos pré-existentes que são exemplos bem sucedidos de venda – e definir os materiais das fachadas – a partir de uma reduzida paleta que associa custo compatível com o empreendimento e a expectativa de representação social necessária para a boa comercialização do produto. Em alguns casos, ao trabalho do arquiteto se antecipa a participação de publicitários, convocados para pensar a fachada dentro das tendências de moda e mercado. Se arquitetos e mercado imobiliário coexistem há tempos, as variadas contradições nesta complexa relação tampouco são novidade.
Todo empreendimento passa por uma sequência de planejamento, implantação e comercialização. Nesse processo é possível diferenciar, de um lado, condicionantes que podem ser entendidos como pragmáticos, cujos fundamentos são mais facilmente aferidos por se tratarem de definições que se dão – ou deveriam dar-se - em instâncias técnicas - variáveis de projeto de arquitetura e engenharia, técnicas construtivas, custos efetivos de implantação, custos efetivos de comercialização -  ou legais – restrições de legislação de uso do solo, prevenção e combate a incêndio, impacto ambiental, entre outras; e de outro lado condicionantes cujo valor ou precisão são intangíveis, que podem ser denominados de não-pragmáticos. Estes decorrem de preconceitos e formulações parciais sobre o mercado por parte de agentes do processo, em especial de corretores de imóveis, e resultam na criação de valores não-intrínsecos ao objeto. Tais valores, em geral, se orientam pela necessidade de diferenciação e representação social que o objeto pode proporcionar a seus compradores - ou consumidores, ou usuários.
III - Variáveis pragmáticas
1. Legislação
Na determinação da viabilidade de um empreendimento a legislação urbanística, em especial a regulação urbana, é um dos balizadores das decisões que orientam: a) o tipo de uso do empreendimento; b) a área máxima a ser edificada; c) a volumetria esperada ou possível a partir das restrições da lei. Em última instância, esses dispositivos legais têm muito mais responsabilidade sobre a forma das cidades do que o trabalho dos arquitetos dedicados ao projeto dos edifícios. As possibilidades de aproveitamento e as restrições de uso do solo urbano alteram fortemente o valor dos terrenos em função dos coeficientes de aproveitamento, e por consequência definem a localização das áreas potencialmente exploráveis pelo mercado  imobiliário. Pouca margem para experimentação de novos arranjos e tipologias é deixada ao trabalho do arquiteto. Nesta etapa, o que se espera do arquiteto é o trabalho do render que apresenta um plano de massas para assegurar a máxima exploração do potencial construtivo do terreno, premissa básica uma vez que cada metro quadrado de área construída adicionada ao edifício reduz o custo proporcional do terreno e torna mais competitivo e viável o produto final em comparação a seus concorrentes. Dentro dessa lógica, é mais eficiente o arquiteto que, compreendendo mais profundamente a legislação e suas brechas, consegue atingir o máximo aproveitamento das exceções da legislação (áreas não computáveis, alturas e afastamentos excepcionais) para gerar mais área comercializável. A legislação urbanística é um dos pilares mais fortes da lógica da indústria da construção civil, e um dos principais - senão o único - instrumentos de controle.
2. Projetos
Os projetos – de arquitetura e engenharia – formalizam o objeto visando necessariamente à máxima economia na etapa de implantação. Nada de errado aí: não se espera que qualquer agente produtivo busque soluções mais caras ou menos eficientes para seu processo de produção. É intrínseco a qualquer forma de produção, pública ou privada, com finalidade lucrativa ou não, a otimização de processos e a redução dos custos de produção. No caso das iniciativas privadas, isso tende ou a ampliar o lucro ou a reduzir o custo final do produto e torná-lo mais competitivo. Em geral, na indústria da construção civil, os valores finais do produto são pré-determinados pelo mercado imobiliário conforme a localização e o padrão do imóvel. Portanto, a otimização dos processos converge necessaria e exclusivamente para a ampliação do lucro do empreendimento.
Alguns dos princípios de projeto utilizados por arquitetos e engenheiros na otimização do processo de produção nesta etapa são:
a) máxima proporção de área comercializável em relação à área total do empreendimento. São aspectos decorrentes desta premissa a redução proporcional de áreas de circulações verticais e horizontais através da concentração do acesso às unidades, do que derivam, entre outras coisas, os tradicionais partidos em “H” de edifícios de apartamentos com 4 ou 8 unidades e a redução proporcional de áreas de garagem, utilizando as vagas presas de modo a otimizar a área sem perder em quantidade de vagas;
b) menor perímetro de fachada para maior área do pavimento, eliminando reentrâncias e saliências, o que significa gastar menos material e mão de obra para a construção de mesma área comercializável – em última instância, o círculo seria a planta mais eficiente neste aspecto, que por óbvias questões construtivas e de arranjo interno, converte-se no quadrado;
c) menor área de janelas, uma vez que, por serem tecnologicamente mais avançados, os sistemas de esquadrias geram maior custo de construção tanto pelo custo da própria tecnologia como da mão de obra mais especializada quando comparados aos sistemas tradicionais de vedação (alvenarias de tijolo cerâmico com os mais diversos acabamentos, construídos por mão de obra com pouca ou nenhuma qualificação);
d) concentração de prumadas, reduzindo o custo de instalações;
e) estruturas com vãos pequenos, com sistemas já assimilados pelos construtores e pela mão de obra, sem transições e não necessariamente moduladas – modulação curiosamente não parece ser uma preocupação da grande maioria de arquitetos e engenheiros calculistas;
f) repetição: tanto pelo espelhamento de unidades, como pela adoção do pavimento tipo. A repetição, por princípio, tende a gerar economia de escala. Contudo, raramente se encontram aplicados princípios de coordenação modular, o que efetivamente contribuiria para a racionalização de processos construtivos e não necessariamente determinariam a organização repetida do apartamento-tipo. Ao contrário, a repetição que se verifica na indústria da construção civil parte da elaboração de uma planta-tipo, que costuma ignorar qualquer lógica de modulação ou racionalização e se define como se fosse construída uma única vez e de modo artesanal, e a repete, agregando ao processo alguns procedimentos semi-industrializados, porém específicos para aquele empreendimento. A repetição é, portanto, circunstancial e localizada, e seu produto é excessivamente determinado e limitado a uma única tipologia. Em São Paulo, a experiência da Construtora Formaespaço nos anos 70 caminhou no sentido de criar edifícios que pudessem ser repetidos, o que exigiu de arquitetos um aperfeiçoamento do projeto arquitetônico a partir de procedimentos mais próximos do desenho industrial. Neste contexto de exceção produziram-se obras de alta qualidade arquitetônica, como os Edifícios Modulares, projetados por Abraão Sanovicz, os Edifícios Gemini, Lark e Coronet, projetados por Eduardo de Almeida, e o projeto do Edifício Protótipo, por Paulo Mendes da Rocha. Essa experiência aponta caminhos para a consideração da ideia da repetição no desenho dos elementos construtivos, e não necessariamente na tipologia, de modo a ampliar a flexibilidade dos espaços internos de uma determinada unidade ou mesmo de todo um pavimento, permitindo a conformação de variados tipos e quantidades de unidades. Essa alternativa permitiria ainda imaginar uma indústria de construção de fato, pensada segundo a lógica de componentes produzidos industrialmente segundo padrões coordenados que permitiriam arranjos infinitos na produção da unidade de moradia. Um princípio baseado na concepção de sistemas e não na produção de objetos poderia contribuir para uma significativa ampliação das alternativas tipológicas nas cidades, e mesmo, em um único empreendimento;
g) flexibilidade: a mesma atitude parcial, incompleta e contraditória aparece neste argumento de venda de empreendimentos residenciais recentes: a planta flexível. Na maioria dos casos, a ideia de flexibilidade não se constrói conforme amplamente pesquisado e realizado pela arquitetura moderna, ou seja, pela adoção de lógicas modulares e de uma disposição de estruturas, instalações e organização espacial interna com maior racionalidade, setorizando os espaços funcionalmente determinados – como sanitários e cozinha – de modo a liberar as áreas secas e indeterminadas funcionalmente para permitir sua reorganização conforme a necessidade específica dos diversos usuários. Ao contrário, o que se faz é demonstrar, a partir da mesma planta convencional com pequenas alterações, duas ou três possibilidades pré-determinadas de transformação do espaço interno, ora integrando quartos para constituir suíte com maior área, ora integrando um quarto à sala, ora integrando a cozinha à sala, conferindo-lhe aparência menos conservadora, ora dando alguma utilidade alternativa à dependência de empregado. Uma flexibilidade mais radical se realizaria se os empreendimentos fossem de fato customizáveis, entendidos como infraestruturas de suporte, com as áreas molhadas, instalações, estruturas e aberturas pensadas dentro de uma lógica de coordenação modular que pudessem ser ocupadas por seus usuários finais com os materiais de acabamento e a disposição espacial desejados, sem a necessidade de demolições em edificações recém-construídas, como se faz usualmente.
3. Custos de implantação e comercialização
Os custos de implantação reúnem o custo do terreno, o custo de projetos e o custo da construção. Somam-se a eles o custo da comercialização e os custos de regularização – alvarás, escrituras e registros das unidades, registro de incorporação - e se terá o custo total do empreendimento. Venda-se pelos valores praticados pelo mercado, a diferença resultará no lucro, após a remuneração do capital empregado para a realização do processo. O custo do terreno é pré-determinado pela sua localização e pelas possibilidades de construção determinadas pela legislação. O custo de projetos de arquitetura e engenharia é irrelevante na totalidade do empreendimento. Na prática, costuma incidir entre 1,5 a 3% do custo da construção, o que corresponde a não mais do que 0,5 a 1% do valor final de venda do empreendimento. O custo de comercialização é também pré-definido: 6% do valor final de venda é a remuneração dos corretores, geralmente incluídos aí os valores investidos em divulgação (ressalta-se que, financeiramente, a venda é aproximadamente 10 vezes mais importante do que os projetos em todo o processo).
Gráfico com a proporção de valores relativos em um empreendimento imobiliário em Belo Horizonte, MG, elaborado a partir de valores de mercado naquela cidade em 2010. O traço vermelho representa a remuneração – e a respectiva valorização profissional. 
Restam duas variáveis manipuláveis para tornar o empreendimento competitivo e rentável: o custo da construção e o lucro. Nesta polaridade se revelam os mais diversos tipos de empreendedores, desde aqueles mercenários que geram vícios ocultos de construção para ampliar seu lucro até aqueles que asseguram um bom nível de qualidade como referência – ou “diferencial” - para seus empreendimentos. Uma das estratégias mais comuns da lógica da construção destinada à venda é a transferência de custos e responsabilidades da fase de construção para a fase de uso. Um claro exemplo dessa prática é a total desconsideração de aspectos relacionados ao clima - como a correta orientação e a instalação de elementos de proteção e atenuação solar. Ao deixar de implantar elementos de atenuação solar durante a fase de construção, amplia-se o lucro inicial e se transfere ao usuário final o ônus pelo pior desempenho energético da edificação. A economia na fase de construção se reverte em sobrecusto de manutenção através do maior consumo de energia decorrente da instalação de equipamentos de ar condicionado, ou exige novos investimentos, na fase de uso e por parte do usuário final, para implantar dispositivos de atenuação solar. Mais raros são os exemplos de empreendedores que investem em qualidade construtiva e arquitetônica. Estes, ao fazê-lo, adquirem um ganho intangível em um primeiro momento ao ampliar sua credibilidade a longo prazo e conseguir, com isso, a fidelização de clientes e vendas mais rápidas, o que também amplia o lucro. Daí resulta um ponto decisivo na determinação do lucro do empreendimento que produz as mais variadas consequências nas tomadas de decisão em todo o processo: o tempo.
4. Tempo – de implantação e de comercialização
Se o lucro é aferido após a remuneração do capital empregado na realização do empreendimento, reduzir o tempo de construção e de venda implica em reduzir o custo do capital empregado. Assim, uma consequência natural do planejamento dos empreendimentos é a redução dos prazos de implantação, o que estimularia, em tese, a adoção de processos de industrialização da construção e de montagem a seco, com sobreposição de etapas e transferência de parte das atividades de produção para fora do canteiro de obras. Contudo, o que se verifica na prática é um sentido oposto de racionalização, que não incide sobre os processos construtivos, mas sobre a forma dos edifícios. Mascaró elucida este aspecto da produção imobiliária com grande clareza, ao comentar a relação entre a altura das edificações, o tempo de construção e seu consequente custo em função da remuneração do capital imobilizado:
Na realidade, os aumentos do custo de construção por custo de dinheiro imobilizado são muito variáveis de país para país, de região para região e até de empresa para empresa, porque dependem, por um lado, da programação da obra adotada e, por outro lado, da taxa de juros do mercado financeiro. (…) as alturas de custo mínimo dependem do momento que vive o país onde se constrói. Nos períodos de recessão (períodos com taxas altas), as alturas econômicas são menores; em períodos de expansão (períodos geralmente com taxas menores), as alturas de custo mínimo serão maiores. 
Daí se verifica que um dos elementos mais importantes para a definição da paisagem urbana de países em desenvolvimento, com edificações baixas e compactas, de construção rápida, é a sua alta taxa de juros, que impõe a necessidade de redução do tempo de implantação dos empreendimentos. Associada a um contexto produtivo em que as escolhas tecnológicas são orientadas pela oferta de mão de obra barata e pouco qualificada, a necessidade de redução de tempo conduz à simplificação dos processos e a adoção de técnicas tradicionalmente empregadas e facilmente assimiláveis por esse contingente de reserva que opera a construção. E, evidentemente, a projetos de construção o mais simples possível, para não afetar a produtividade dentro dessa lógica. Neste contexto, a única hipótese de redução de tempo no processo de construção passa pela simplificação da forma dos edifícios, aplicando os pressupostos mais óbvios que se relacionam à otimização da construção tradicional: pouca altura, alta compacidade, grande repetição.
Em contrapartida, a necessidade de redução do tempo de comercialização é influenciada por inúmeros condicionantes que podem ser entendidos como não pragmáticos, como se apresentará a seguir.
IV. Variáveis não pragmáticas
1. Aparência de novidade x segurança da repetição do comum e do reconhecível
Uma das maiores contradições do mercado imobiliário pode ser visualizada pela metáfora do arquiteto-equilibrista: por um lado, o edifício deve sempre trazer aparentes novidades; por outro, deve construir uma imagem reconhecível.  No caso de edifícios comerciais, como os Shopping Center's, a cultura da novidade submete o edifício a um processo permanente de autodestruição e reconstrução, com ampliações sucessivas que se apresentam como novidades não apenas por ampliar a oferta de área locável, mas por ampliar infinitamente alguns de seus espaços, com radicais mudanças de escala em estruturas e infraestruturas e, principalmente, na sua aparência. Estabelece curiosamente um esforço permanente por apagar a memória, como se o edifício e o lugar conseguissem preservar-se novos ao longo do tempo. Essa reconstrução permanente que se vê nos shopping centers tem o mesmo fundamento que determina que um edifício ou uma dada forma de morar ou um determinado material está “velho” e precisa ser substituído. Ela se faz através dos mesmos mecanismos de indução das transformações do gosto, de obsolescência programada e de criação de valores de signo e diferença que orientam a moda, neste caso, porém, aplicada a produtos um tanto mais caros, mais duráveis e com mais responsabilidade em relação à cidade.
Em aparente oposição a esta cultura do novo, verifica-se uma busca pela repetição de padrões. A novidade de amanhã é uma mera maquiagem da novidade de hoje, rebatizada e reformada. Trata-se do “new look”, explicado pelo designer norte-americano Brooks Stevens, como a busca por uma novidade na imagem de um produto que estimule o consumidor a comprá-lo. Essa lógica revela o mais profundo conservadorismo dos mercados, que nunca correm riscos. Ela se sustenta na ideia de que é infinitamente mais fácil convencer alguém a consumir um produto que já conhece do que algo totalmente desconhecido. Essa lógica tem gerado a esmagadora maioria dos edifícios das nossas cidades grandes e médias, definidos por volumes prismáticos de grande compacidade, com uma compartimentação interna que repete a subdivisão espacial da casa burguesa, com clara diferenciação entre os setores social, íntimo e de serviço. O princípio da organização interna do apartamento-tipo - seja ele de um, dois, três ou quatro quartos - pode ser entendido como um núcleo duro do mercado: constitui-se em um fundamento em que não se fazem concessões. Toda a liberdade do arquiteto é, portanto, circunscrita ao desenho das varandas, que se plugam a este núcleo duro e pretendem gerar a diferenciação do objeto projetado em relação a seu vizinho. Mesmo em alguns projetos que supostamente promoveriam avanços em relação aos princípios de mercado, a variação mais significativa que se encontra, sob o ponto de vista tipológico e programático, não repropõe este núcleo duro, mas se limita à reinterpretação desse elemento acessório do programa – a varanda -, seja acrescentando-lhe alturas variadas, com pés-direitos duplos, às vezes alternados, seja desenhando terraços com estruturas em balanço, seja transformando-o em jardins suspensos para torná-lo mais adequado ao discurso de sustentabilidade ambiental, recém instituído como instrumento de marketing nesse mercado.
Na indústria da construção civil, a produção geral demonstra que um empreendedor somente propõe algo que já é conhecido e já foi testado em um dado mercado, e que corresponda a uma expectativa de venda que lhe assegura um retorno financeiro esperado – leia-se, rápido. Com isso, avança-se muito pouco no âmbito da arquitetura, e se forjam diversos preconceitos e valores que são vendidos pelo marketing imobiliário como qualidades arquitetônicas. Entre estes valores, destacam-se os novos programas de necessidades.
2. Programa de necessidades
Apresentar o programa de necessidades entre os valores não pragmáticos é já um sintoma do problema que contamina o mercado e mina a credibilidade dos arquitetos neste contexto. O programa de necessidades de um empreendimento imobiliário não costuma ser definido a partir de possibilidades pragmáticas e análises técnicas com a participação dos profissionais de projeto, mas por pesquisas de mercado e por recomendações de empreendedores e corretores de imóveis – cuja formação mínima é técnica em nível de segundo grau, portanto sem a mesma formação de um arquiteto ou engenheiro. Essa definição, menos técnica e mais ancorada na percepção e experiência dos agentes envolvidos a respeito do seu potencial mercado consumidor, acaba por se fundamentar mais em valores intangíveis - impressões - e em aspectos quantitativos do que em aspectos arquitetônicos e qualitativos.  Os argumentos utilizados pelos corretores na venda dos imóveis acabam por se tornar os argumentos dos empreendedores para a formatação do programa de necessidades sobre o qual trabalharão os arquitetos. Geralmente esses argumentos não abordam, por uma óbvia limitação de formação dos vendedores, aspectos qualitativos dos edifícios, que decorrem diretamente da qualidade de sua arquitetura, tais como as virtudes de sua implantação, da inserção urbana do edifício, da disposição espacial interna, da abertura à luz natural, à ventilação e a visuais de maior interesse, a ordenação construtiva e seu potencial para gerar flexibilidade real. Quando descrevem o produto imobiliário, limitam-se a aspectos quantitativos como o número de vagas de estacionamento, o número de quartos e banheiros, o número de elevadores, o padrão dos materiais de acabamento, os inumeráveis equipamentos de uso comum, e os recursos tecnológicos embarcados no edifício - os sistemas de segurança, a portaria blindada, o aquecimento das piscinas, a potência do som do home-theater de uso coletivo. Mesmo quando abordam a qualidade dos materiais, não buscam afirmar sua permanência, ou eficiência – qualidades utilitárias –, mas o foco se centra no que os corretores chamam de “diferencial”, ou o que faz com que o objeto a ser consumido se diferencie de outros, justifique seu preço e sugira exclusividade.
Os argumentos de venda – e naturalmente os próprios empreendimentos imobiliários – vêm sendo fortemente influenciados pelas mostras de decoração, que propõem uma superespecialização funcional e criam novas denominações para antigos espaços. Essa influência é o aspecto visível de uma consistente organização profissional dos decoradores – também autorrebatizados de “arquitetos de interiores” ou interior designers ou simplesmente designers - que conseguiu estabelecer seu reconhecimento social através das mostras. Ali, vendem não a qualidade intrínseca dos produtos reunidos ou do seu próprio trabalho, mas um “estilo de vida” ligado ao luxo, ao supérfluo, ao “chic”. Por mais superficiais que sejam alguns de seus argumentos – ou justamente por sua superficialidade - eles atingiram o público consumidor do mercado imobiliário a ponto de forçar a sua assimilação direta nos projetos dos novos edifícios. Inteligentes, apelam para “o desperdício no impulso por prestígio”, que é a “base original e não utilitária para o consumo”. Em última instância, os decoradores vêm assumindo quase exclusivamente – por omissão dos próprios arquitetos - a formação de valor e de gosto que define os argumentos dos agentes do mercado imobiliário, mediados pelas demandas dos próprios consumidores, que compram a ideia da diferença vendida nas mostras, amparada por conceitos como “tendências”, “estilo”, “estação”, entre outros, diretamente transpostos do mundo da moda para o da construção.
A superespecialização funcional que orienta a organização dos espaços comuns é a mesma que define historicamente a organização interna dos apartamentos. Essa prática funcionalista resulta no que Silke Kapp denomina “Síndrome do Estojo”. Partindo da comparação realizada por Walter Benjamin entre a moradia burguesa e os estojos do século XIX, Kapp discorre sobre a lógica da projetação de moradias por arquitetos europeus do final do Século XIX que pressupõe “um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar”. Verifica a aplicação desse princípio nas propostas de moradia mínima desenvolvidas pelos arquitetos modernos nos CIAM – Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – e na produção de massa da segunda metade do século XX, evidenciando suas contradições, sua lógica de perpetuação das relações socioeconômicas e sua inadequação às transformações das demandas dos usuários no tempo. E apresenta algumas alternativas a esse procedimento de “encaixe e acondicionamento” desenvolvidas desde a segunda metade do século XX, entre as quais a teoria dos Suportes de John Habraken. A Síndrome do Estojo seria, portanto, uma decorrência direta da abordagem funcionalista e, em especial, da permanente busca de especialização dos espaços, definidos por programas de necessidades restritos a uma dada situação temporal e elaborados em atendimento a demandas específicas de usuários específicos, ainda que destinados a um consumo de massa. Dela decorrem as mais absurdas soluções de projeto presentes nos edifícios contemporâneos, cuja excessiva compartimentação gera moradias que, em alguns casos, possuem mais banheiros e vagas de garagem do que moradores.
3. Delimitação de público alvo
Todos os edifícios produzidos pelo mercado, sejam habitacionais ou comerciais, buscam a estratificação socioeconômica de seus moradores e usuários. A quase totalidade da produção recente dessa arquitetura edita e aperfeiçoa os padrões de segregação.
Os edifícios de moradia são em geral pensados para grupos estratificados social e economicamente – moradores-tipo para apartamentos-tipo. É cada vez mais raro encontrar edifícios com alguma variedade de tipos, com áreas variadas e para público diversificado, como se fez amplamente na produção imobiliária residencial dos anos 50 aos 70. Mesmo nos recentes grandes condomínios verticalizados com múltiplas torres, que compartilham áreas comuns similares a clubes, a diferença entre os apartamentos-tipo de cada torre é mínima, buscando ampliar ligeiramente o público potencial através da oferta de apartamentos em uma faixa de preços alargada, mas preservando integralmente o perfil socioeconômico uniforme do conjunto dos moradores.
Por outro lado, todos os grandes edifícios não residenciais vêm editando a lógica do Shopping Center – espaços que estruturam o cotidiano a partir da lógica do consumo, simulando uma falsa urbanidade de corredores e praças acessíveis somente a quem tem poder de consumo, dando as costas para a cidade e ampliando os dispositivos de segurança. Nas cidades, a grande maioria das novas urbanizações privatiza ilegalmente os espaços públicos sob a forma de falsos condomínios, com a leniência do poder público. Todos os esforços contemporâneos de planejamento e projeto voltados para o mercado se dedicam a privatizar o urbano e a eliminar a diversidade. Em todas as instâncias do mercado, esta segregação socioeconômica tem por objetivo facilitar e acelerar a venda entre consumidores de uma determinada faixa de renda. Se o que se vende não é o imóvel, mas o status que ele representa e que diferencia seu proprietário, ampliando-lhe aparentemente o prestígio e a exclusividade, misturar tipos de unidades, faixas de renda e perfis sociais e econômicos dos moradores ou consumidores eliminaria a percepção dessa diferença.
4. Valor da diferença
A arquitetura teve uma ampla penetração e uma significativa importância no mercado imobiliário nos anos 40 a 70, em um momento em que as qualidades de uso e a concretude material das coisas ainda guardavam algum valor – os famosos valores de uso de troca, em um momento anterior à aplicação da obsolescência programada na arquitetura. Em um contexto de criação de valores intangíveis e imateriais, que tentam se desvincular das especificidades materiais objetivas das coisas para criar imagens e representações de poder e consequente diferenciação social, o valor da arquitetura descola-se de seus aspectos construtivos e utilitários e se redireciona para uma construção nebulosa da ideia de prestígio e exclusividade. Neste contexto, é inútil compreender o objeto arquitetônico a partir de suas características utilitárias ou por seu valor como mercadoria, mas como um objeto inserido na sociedade de consumo contemporânea. Jean Baudrillard amplia a lógica dos sistemas de objetos para além do objeto de valor utilitário e do objeto de valor de troca
(...) acrescentando o objeto simbólico e o objeto do signo à categoria do objeto. Ele então argumenta que é necessário distinguir quatro lógicas diferentes: (1) A lógica das operações práticas, que corresponde ao valor de uso; (2) a lógica da equivalência, que corresponde ao valor de troca; (3) a lógica da ambivalência, que corresponde à troca simbólica; e (4) a lógica da diferença, que corresponde ao valor do signo. Essas lógicas podem ser resumidas como as da utilidade, do mercado, do presente e do status, respectivamente. Na lógica da primeira categoria, o objeto torna-se um instrumento, na segunda um bem, na terceira um símbolo, e na quarta, um signo. (...) seu aspecto diferencial ou relacional torna-se crucial na compreensão deles. Além disso, embora haja um aspecto utilitário em muitos objetos, o que é essencial para eles é sua capacidade de significar um status. Com relação a isso, até mesmo a negação pode ser uma luxúria – como quando o “bom gosto” exige que uma sala não fique demasiadamente atulhada de objetos. 
A arquitetura, neste âmbito, passa à total irrelevância, já assumida incontestavelmente pelos anúncios imobiliários: se o produto propriamente não interessa, os anúncios, que outrora apresentavam uma planta do pavimento tipo e uma perspectiva externa do edifício, passaram a vender apartamentos com uma foto de algum fato notável preexistente no terreno – uma vegetação relevante, uma vista, um vizinho notável -, uma detalhada explicação sobre as virtudes e exclusividades da localização, e uma bela imagem da piscina integrada ao fitness center. Vende-se a ilusão da diferença e da exclusividade. O apartamento: quatro suítes, quatro vagas na garagem. Como qualquer outro.
Ocultos nesta lógica do marketing imobiliário estão a redução de área privativa das unidades (26), o respectivo aumento do número de unidades diluindo o custo proporcional das áreas de uso comum, maior valor agregado com alguns onerosos materiais da moda, e a consequente venda rápida com lucros astronômicos.
V . Pequenas contrafacções: nunca demolir, reconhecer a cidade, projetar infraestruturas, assumir novos papéis
Neste contexto de produção do espaço em que o arquiteto tem a relevância de um traço – e remuneração proporcional à sua relevância -, algumas pequenas, mas importantes ações permitem identificar alternativas à massificação funcionalista que decorre dessa lógica.
A primeira delas é um exemplo que vem de fora. Quando tratamos do habitar em uma metrópole contemporânea, em que as densidades populacionais são altíssimas, o custo da terra, exorbitante e as infraestruturas, congestionadas, o que é mais escasso, e portanto se converteria no maior luxo possível, não são os materiais, mas sim, espaço – maior área construída privativa com qualidade ambiental, como afirmam Druot, Lacaton e Vassal:
Uma casa ótima é uma casa luxuosa. O luxo é um termo que surpreende quando se trata de habitação popular, mas, não obstante, o “luxo” é uma noção menos ambígua do que “qualidade”. Aquela noção é imprescindível porque não deixa dúvidas quanto à intenção de quem a emprega. Enquanto a “qualidade”, perpetuamente normatizada e parametrizada, acabou por converter-se numa ferramenta da lógica econômica e administrativa que vale para tudo, o luxo ainda está por ser criado, é a expressão de uma generosidade dos espaços a serem construídos: abundantes em luz natural, confortáveis em sua simplicidade e fluidos no limite entre interior e exterior. 
Os arquitetos franceses têm realizado intervenções em edifícios residenciais existentes salvando-os da demolição e potencializando as virtudes de um momento em que se construíam apartamentos com área privativa mais generosa do que atualmente. Ao introduzir novos elementos que ampliam a área construída de cada unidade, promover maior abertura e transparência das fachadas - o que melhora significativamente a qualidade ambiental dos espaços internos - e desobstruir a excessiva compartimentação original, promovem uma requalificação de fato, para além da mera renovação material dos edifícios. Tais procedimentos parecem bastante adequados ao contexto brasileiro, visto que as áreas centrais de nossas capitais têm uma grande quantidade de edifícios produzidos entre os anos 40 e 70 cuja renovação é iminente e urgente, e que podem ser salvos da demolição. A atitude de não demolir apresenta ainda forte preocupação ambiental, ao, por um lado, dispensar um enorme esforço e investimento para a nova construção; e por outro lado, evitar uma grande geração de resíduos.
Um segundo exemplo importante é a iniciativa pontual de incorporadoras que investem em arquitetura. O representante mais relevante desse pequeno grupo é a incorporadora IdeiaZarvos!, de São Paulo, que introduz preocupações incomuns na concepção de seus empreendimentos: o respeito aos bairros em que constroem, a geração de impactos positivos nos locais, a criação de pequenas praças e espaços públicos integrados aos edifícios, a racionalização no uso de recursos naturais, a racionalização dos elementos permanentes de estrutura e infraestrutura de modo a favorecer a transformação e criar real flexibilidade, e, mais importante, a opção deliberada por contratar bons arquitetos para desenhar seus produtos. Embora pequena proporcionalmente à escala do mercado imobiliário paulistano, a presença da IdeaZarvos! tem promovido sutis mudanças nos produtos de seus concorrentes, ainda que a maioria delas seja cosmética. Ao fazer uma opção deliberada por contratar bons arquitetos, e ao utilizar isso como marketing e criação de diferença, a empresa se insere de maneira inteligente e sem ingenuidade no mercado, apropriando-se da lógica da diferenciação para transformar a arquitetura em signo e ampliar o valor e acelerar as vendas de seus produtos. Como consequência, gera alguns efeitos colaterais positivos que repercutem em qualidade para seus clientes e, mais importante, para a cidade.
O sucesso da IdeaZarvos! não seria o mesmo se não contasse com o trabalho de um seleto grupo de arquitetos de grande competência. Um componente central dessa fórmula saiu dos bancos da escola. Neste caso, de uma “escola” em sentido amplo – a Escola Paulista -, em que parece ser possível o que propõe Alvaro Puntoni:
Não abdicar de uma inteligência construída talvez seja o ponto de partida para o estabelecimento de um possível e desejável denominador comum na Arquitetura Contemporânea Brasileira.
Não se trata de simplesmente aceitar passivamente ou renegar as experiências anteriores, como quem escolhe fortuitamente um caminho, mas saber valorizar o que de essencial e significativo elas realizaram e as suas possibilidades de desdobramento e multiplicação no presente momento, como quem procura conhecer todas as veredas de um caminho.
Uma terceira contrafação às práticas do mercado decorre justamente da qualidade do trabalho dos arquitetos envolvidos nos projetos que furam a lógica do mercado, particularmente ao reconhecer a falácia do funcionalismo e reverter seus esforços para o projeto dos elementos permanentes – estruturas e infraestruturas – que a um só tempo consideram a cidade e qualificam seu entorno através da presença digna dos seus edifícios na paisagem, e criam suportes indeterminados que reconhecem a possibilidade de transformação dos espaços do cotidiano. Esse modo de pensar o edifício está presente em diversos dos projetos realizados para a IdeaZarvos!. Destaca-se, dentre eles, o projeto do Edifício Simpatia, projetado pelo Grupo SP – Alvaro Puntoni, João Sodré, Jonathan Davies – pela capacidade de estabelecer uma síntese virtuosa que inclui o  reconhecimento do sítio, da topografia e da geografia, a possibilidade de criar espaços abertos e com grande qualidade ambiental e urbana, a resposta às exigências contemporâneas de indeterminação e abertura ao usuário e um rigor construtivo que revela um consistente aprendizado com aqueles que lhes precederam.
Por último, uma ação possível no contexto do mercado e da produção imobiliária parte do reconhecimento dos limites e dificuldades para se atingir resultados relevantes através da prática reativa convencional de produção de projetos por demanda de incorporadores. Guardadas as raras exceções em que a arquitetura integra a pauta que formata os empreendimentos, em geral a prática de elaboração de projetos nesse contexto resume-se à formalização da legislação e à execução da respectiva aprovação legal do projeto junto aos órgãos competentes. Uma alternativa a essa prática reativa é o deslocamento do arquiteto de sua posição de projetista, prestador de serviços, para a de construtor ou de incorporador. Ao fazê-lo, o arquiteto assume para si uma porção mais significativa do poder de decisão – o que se reflete proporcionalmente na sua responsabilidade e na sua remuneração. Alguns precedentes importantes podem orientar a abertura novos caminhos no sentido da melhoria da produção arquitetônica nesse contexto.
Na Argentina, a existência de um dispositivo legal denominado Fideicomiso permite que arquitetos comandem todo o processo de concepção, construção e comercialização de edifícios residenciais. Através da organização de grupos de proprietários ou investidores que financiam o processo de construção, conduzido sob a coordenação de um arquiteto, amplia-se significativamente a diversidade da oferta imobiliária quanto à tipologia e padrão construtivo. Amplia-se, também, o campo de atuação dos arquitetos e consequentemente seu potencial de remuneração. O mais visível efeito desse sistema é uma qualidade consideravelmente superior da construção média nas cidades, o que contribui, somado a outros cuidados de planejamento no âmbito público, para garantir uma qualidade mínima das cidades e de suas paisagens urbanas.
Em Belo Horizonte, ao menos três exemplos pioneiros produziram edifícios de grande qualidade arquitetônica que se diferenciam da média da produção e culminaram por se tornar referências de qualidade para arquitetos e não arquitetos.
Em 1968, o recém formado Éolo Maia se somou a um grupo de amigos e projetou o Edifício Tinguá. De forte influência brutalista, a proposta do edifício consistia em produzir mais espaço habitável com o mesmo investimento inicialmente programado pelo grupo, através da adoção de materiais brutos e da redução de acabamentos. O programa inicial de 95 m2 foi ampliado a 130 m2 mantendo o orçamento previsto inicialmente. Éolo argumentava ainda que a auto-organização favoreceria a “participação efetiva e afetiva” dos moradores tanto no projeto como na construção. A organização interna que concentra as instalações hidráulico-sanitárias favorece a flexibilidade e a transformação do espaço interno, de modo a acomodar as mais variadas demandas dos 16 clientes reais – entre os quais ele próprio.
Planta do pavimento tipo do edifício Tinguá [Bruno Santa Cecília, 2006]
Em 1983, Joel Campolina projetou e incorporou, associado a uma empresa de construção, o Edifício Serramares, que antecipa diversos conceitos presentes nos edifícios recentemente empreendidos à margem do grande mercado. 
Explica o arquiteto:
No terreno, originalmente havia uma vila-residencial típica do bairro, com seis casinhas e um corredor lateral de acesso. Esse mesmo padrão aparece reinterpretado nos 10 pavimentos-tipo do novo edifício. Cada um possui seis casinhas-apartamentos ao longo de uma passarela envidraçada lateral de acesso. Uma alternativa aos corredores confinados, mal iluminados, lembrando hotéis ou hospitais, comuns nesse tipo de edificação. As 66 unidades residenciais de um dormitório têm janelas amplas nos ambientes principais, aumentando virtualmente os espaços interiores. Os 6 apartamentos de topo são de 2 dormitórios duplex do tipo “lofts”. No pavimento térreo existem 11 conjuntos comerciais para escritórios, com entrada independente para o setor residencial. Na fachada Oeste foram executados brises verticais fixos, diminuindo o impacto direto da insolação desfavorável além de soluções indutoras à ventilação cruzada, otimizando o conforto térmico-ambiental.
Paredes-divisórias e lajes duplas que otimizam o isolamento acústico entre os apartamentos adjacentes. Esta obra, embora aparentemente complexa pelo nível elevado de detalhes, foi concluída no prazo estabelecido e o custo final apurado foi paritário com o custo de obra similar convencional executada simultaneamente pela mesma construtora (conforme atestado fornecido). A participação sistemática do Arquiteto/RT no canteiro, durante todo o processo da obra foi fator fundamental para o resultado obtido. 
Em 2004, foi concluída a construção do Edifício Loft, projetado por Julio Araújo Teixeira. Neste caso, o arquiteto não atuou como incorporador, mas identificou um terreno residual, desprezado pelas grandes construtoras e, a partir de uma engenhosa geometria que decorre de uma interpretação crítica da legislação, propôs a uma construtora um projeto. Para além da engenhosa implantação e de sua volumetria, o aspecto mais virtuoso do edifício está em seu interior. Em lugar da moradia-tipo repetida e empilhada, cada apartamento é singular; sua organização interna, específica; suas aberturas aproveitam as vistas; sua área é variada. Têm em comum não a disposição espacial enrijecida, mas apenas os elementos estruturais e infraestruturais: pilares e colunas hidráulicas; ao invés de compartimentar os espaços internos, os libera e integra nos dois níveis internos de cada um dos 13 apartamentos.
Nos últimos anos, diversas outras iniciativas de inserção não convencional do arquiteto no âmbito da produção imobiliária – seja na incorporação, na construção, na comercialização ou na organização de grupos de construção e condomínios - vêm permitindo criar meios para produzir edifícios que fogem da massificação orquestrada pelo mercado. Em um ambiente dominado por edifícios sem imaginação, cada iniciativa, por menor que pareça, cumpre uma função fundamental de abrir caminhos e demonstrar possibilidades para a construção de cidades melhores.
(Carlos Alberto Maciel é arquiteto e urbanista, mestre e doutorando pela EA-UFMG, onde é professor de projeto. É fundador e editor da revista MDC, sócio titular do escritório Arquitetos Associados – www.arquitetosassociados.arq.br - e da OVO - www.ovo.arq.br)