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A cigarra e a formiga

Roberto Pereira D'Araujo – Valor Econômico - 15 de janeiro de 2014 1252 Visualizações
A cigarra e a formiga
 
A fábula de La Fontaine conta a história de uma cigarra que, durante o verão, cantava despreocupada e de uma formiga, que, ao contrário, preservava sua casa e alimentos para o inverno, período de escassez. A história original revela uma formiga pouco sensível ao sofrimento alheio, já que, perante a súplica da cigarra, pergunta o que ela estava fazendo no período da bonança. Ao responder que apenas cantava, a formiga disse: - Pois agora, dance!
Independente das varias adaptações da história original, o nosso setor elétrico está passando por uma história muito semelhante. Infelizmente, estamos sob a gestão da cigarra.
Desde outubro de 2012 estamos amargando uma conta bilionária de usinas térmicas que ultrapassou todas as previsões possíveis. Estranhamente, logo após a pomposa cerimônia que anunciou a intervencionista medida provisória 579, numa simbólica data (11 de setembro de 2012, 11 anos após a queda das torres gêmeas), percebemos que precisamos de uma enorme quantidade de geração térmica. A conta de gastos em combustível já se aproxima de R$ 10 bilhões, suficientes para se construir uma usina hidrelétrica de 2.000 MW!
Muitos consumidores desconhecem que as usinas térmicas são acionadas em função de um parâmetro, o custo marginal de operação (CMO). Calculado pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), quando os reservatórios têm água o suficiente para atender grande parte da demanda, o CMO tende quase a zero justificando a decisão de não usar as térmicas. Quando os reservatórios se esvaziam, o CMO se eleva e vai exigindo o uso das térmicas gradativamente, da mais barata para a mais cara.
Como o Brasil adotou um modelo onde usinas não vendem a energia que geram, mas sim uma parcela do todo, as térmicas liquidam a sua não geração pelo Preço de Liquidação de Diferenças (PLD), que nada mais é do que uma imagem do CMO. O gráfico mostra a evolução desse valor desde 2003. É possível ver que, por muitas vezes, esse preço atingiu valores irrisórios.
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Esse gráfico é a própria filosofia da cigarra. Nos períodos de bonança cantávamos deixando que 1 MWh fosse liquidado por valor tão baixo quanto R$ 4. Como tal preço é completamente irreal em termos de mercado e só ocorre em função da adaptação mercantil sobre nossa singularidade, agora, em 2013, estamos tendo que amargar as contas bilionárias com CMO bem acima de R$ 200/MWh.
Qual seria a gestão da formiga? Em vez de deixar que 1 MWh possa custar apenas R$ 4 ou R$ 16 para alguém, estabeleceria um valor maior, mas ainda muito barato em relação ao preço da energia de uma usina nova. 
Cobrando-se esse preço, a formiga formaria um fundo para compensar os períodos difíceis. Poderia ser qualquer valor razoável, inclusive acordado entre os agentes. A grande distinção é que, nesse caso, a renda da exuberância das afluências é capturada para todos os consumidores. A diferença entre o PLD e esse nível fixado não é de nenhum gerador.  Pertenceria a todo o sistema e iria fazer com que as despesas bilionárias tivessem um financiamento natural, do próprio sistema brasileiro.
Um esquema muito parecido com o da formiga foi sugerido ao governo em 2003. Não foi sequer apresentado porque, infelizmente, há uma espécie de ditadura do mercado a qualquer preço. No nosso caso, a frase ganha também o significado literal porque o PLD não é sequer um preço de mercado. Trata-se de um custo de oportunidade determinado pela ótica monopolista que o nosso operador é obrigado a adotar, fruto das nossas exclusivas características.
A renda advinda da exuberância das afluências tropicais é tão óbvia quanto a da amortização das usinas antigas. Nesse último caso, em vez de recuperar o nível contabilizado de tal maneira que as velhas senhoras pudessem continuar a gerar recursos para novas meninas, adotou-se mais uma estratégia da cigarra, o estrangulamento das empresas da Eletrobrás, uma espécie de desmonte da própria casa.
Quem ainda não percebeu que já estamos dançando?
(Roberto Pereira D'Araujo é engenheiro eletricista - diretor do Ilumina - Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico.)