O apagão que atingiu 13 estados brasileiros e o Distrito Federal e deixou 6 milhões de pessoas sem energia, na terça-feira 4, expõe a precariedade do sistema energético nacional. A avaliação é do ex-diretor da Petrobras Ildo Luís Sauer, diretor do Instituto de Energia da USP e colunista do site de CartaCapital. Um dos articuladores do programa de governo do PT para o setor energético, em 2002, Sauer compara a situação atual da Eletrobras à do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele aponta que, em 2004, quando o projeto de governo idealizado dois anos antes seria aplicado, a presidenta Dilma Rousseff, então ministra de Minas e Energia, priorizou os interesses de investidores e grandes consumidores. Nesta decisão está a base da crise atual. Na entrevista abaixo, o especialista diz que, apesar do baixo investimento em fontes alternativas de energia e da ingerência sobre o setor nos últimos anos, um novo racionamento ainda não está à porta”. CartaCapital: Houve uma série de apagões ao longo da semana em vários estados do País. Corremos risco de enfrentar um novo racionamento de energia? Ildo Luis Sauer: Vamos separar apagão de racionamento. Apagão é o que aconteceu na terça-feira 4. Agora, o ministro disse que o risco de racionamento é zero e isso é mentira. Estamos no começo de fevereiro e as chuvas vão até começo de abril. Só poderemos ter um quadro definitivo da situação, portanto, em abril. Mesmo assim, o governo foi ajudado, nos dois últimos anos, por chuvas bem acima do que se espera normalmente. Agora, chover acima ou abaixo faz parte do processo. Felizmente em 2011 e 2012 choveu acima da média depois do período de chuvas. Nos outros anos, as chuvas reduziram o prejuízo e impediram o racionamento. Se tivesse chovido muito abaixo, teríamos que importar energia da Argentina, que não tem nada para mandar, ou operar termoelétricas, mais ainda do que operamos. O racionamento não está à porta, porém a situação é desconfortável. Só o fato de a gente estar discutindo isso depois de dez anos (do racionamento de 2001) é uma vergonha. Só podemos afirmar que a situação é desconfortável e que nós vamos queimar muito dinheiro em termoelétrica desnecessariamente. Eu não posso dizer que vai ter racionamento porque eu não sei se vai chover entre fevereiro, março e abril. Eu não sou catastrofista, sou realista. CC: A sombra do apagão de 2001 volta quando se fala nesse assunto. São momentos diferentes? ILS: Nesse momento, não dá pra comparar com o quadro de 2001 porque não tínhamos a mesma capacidade térmica, e a demanda era menos da metade do que é hoje. São situações diferentes. Mas também só decretaram racionamento em maio de 2001, apesar de a gente ter advertido o Roberto Araújo (então diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico) em 2000. Não vai mais chover, então vamos racionar, melhor poupar 20% agora do que chegar no final do ano apagando tudo, foi o que pensaram. Agora, mesmo depois da falsa promessa em 2004, depois da autoritária Medida Provisória 579, que destruiu o patrimônio público, ninguém pode dizer que não teremos problemas e nem que vai ter. Nada está afastado do horizonte. Se nós pegarmos o período extremamente crítico de hidrologia e arrastarmos até a metade do ano, acho que a situação fica complicada, muito complicada. É prematuro fazer declarações, podemos fazer suposições. Se chover muito pouco, teremos de avaliar a situação entre abril e maio. CC: A ONS fala que o incidente durante a semana foi um problema de transmissão, e não tem relação com a oferta e o consumo. Isso é real? ILS: Aumento de consumo é previsível. Nada aconteceu fora do que era previsível. O crescimento do consumo do nível de produção e de renda das pessoas. A crise mundial de 2008 e o não crescimento industrial do Brasil reduziram a expectativa de antes. A “desgraça” econômica ajudou a demanda a não crescer tanto. De fato, não é por causa da demanda. Se houve problema de transmissão é porque não fizeram a manutenção adequada porque falta linha de transmissão alternativa. Então, é um problema técnico, de planejamento, um problema de manutenção. Qualquer sistema complexo, como um reator nuclear, um avião ou o sistema elétrico brasileiro tem de ter plano de manutenção preventiva para garantir que todos os componentes estejam auditados e restaurados para garantir seu serviço. E o critério deve ser o seguinte: minha linha de transmissão mais importante não deve sofrer dano algum, tem de se recuperar normalmente. Não foi o que ocorreu na terça-feira 4, perdemos a linha de transmissão e quase houve um colapso nacional. O governo vai e faz festa porque conseguiu converter um desastre grande em um desastre pequeno. Eu me senti com vergonha alheia, em nome do governo. Ele reconheceu que poderia ter sido catastrófico, quando não deveria nem ter acontecido. CC: Existe a necessidade hoje da racionalização do uso de energia por parte da população? De alguma maneira ela está sendo preparada para isso? ILS: Sempre existe. A redução do consumo faz bem. O governo, hoje, abandonou os programas de uso racional de energia. Eles são necessários. Melhora a produtividade, qualidade e reduz a poluição, só que o governo esqueceu. CC: O senhor fala de uma mudança no plano do governo para o setor de energia, que acabou fugindo do que havia se planejado há mais de uma década e pensado a longo prazo. Por que isso aconteceu? ILS: O programa de governo de 2002, com o Lula, veio como resposta ao racionamento do governo do FHC. O programa tinha alguns pontos importantes, como fazer um planejamento de longo prazo; mapear todos os recursos energéticos brasileiros segundo seus méritos técnicos econômicos e seus critérios ambientais e sociais; descartar aqueles que têm restrições sociais e ambientais e ordenar o restante segundo seu mérito técnico econômico. Com base nisso, seria possível planejar a expansão e fazer leilões pra aumentar a capacidade, garantindo o retorno do investimento de longo prazo. De outro lado, haveria estudo de demanda em cada região, e a tarifação levaria em conta isso. O governo nada fez de 2002 a 2004. A proposta foi usada para atender as barganhas de grupos econômicos envolvidos na área de energia e os grandes consumidores privados. As estatais não participaram, os especialista também não, nem os movimentos ou os especialistas independentes. Em 2004, quando a então ministra de Minas e Energia Dilma Rousseff sentou-se à mesa com os investidores e os grandes consumidores e outorgou a eles uma corrente de benefícios, criou um modelo que beneficiava seus interesses. O setor elétrico virou um palco de barganhas para atender a base econômica e satisfazer a base política do governo em detrimento dos interesses da população e da melhoria da infraestrutura e da redução de custos da energia no Brasil. Com isso, o modelo de 2004 só manteve a explosão tarifária, e foram feitas péssimas escolhas para a expansão. As usinas que estavam construídas no período esgotaram a sua capacidade ociosa e foi preciso contratar usinas a óleo, combustível, carvão e gás. Críticas ambientais e de preço vieram e eles tiveram de recorrer a projetos de estepe, como as usinas de Belo Monte e as do Rio Madeira, que certamente não estariam na ordem de mérito sequencial se o dever de casa estivesse feito. CC: O fato de o ministério de Minas e Energia ter passado para o Edison Lobão, um aliado da família Sarney, também foi parte dessa barganha política? ILS: Não faz muita diferença a nomeação dele. Porque os interesses que o Lobão representa a hoje presidenta Dilma Rousseff já tinha acolhido havia muito tempo. Não tem muita diferença entre uma trajetória e outra. Isso ficou claro depois de muito tempo. O Lobão está lá porque obviamente a presença do lobby e a sua força dentro do governo já estavam lá. Não tem diferença porque atende às negociações de interesses de forma semelhante. Lobão é uma continuidade natural de Dilma. CC: Como o senhor vê a estratégia do governo de reduzir as contas de luz para parte da população? É a isso que o senhor se referia quando escreveu sobre 'propaganda populista' em um artigo recente? ILS: Em 2012, o governo reconheceu que as tarifas brasileiras tinham explodido, tinham saído do controle e anunciaram um programa artificial de redução do custo do preço: 20% para residência e 30% para os grandes consumidores. Só que quis fazer isso sem diminuir os custos, fazer às custas do patrimônio público. Quer pegar as usinas existentes, que pertencem a Furnas, e entregar para a Fiesp e para o populismo da candidata à reeleição. Só que isso se tornou inviável devido a péssima expansão da oferta, com falta de usinas hidráulicas e eólicas e com as usinas térmicas segurando a geração necessária para produzir energia, numa demanda que não passou do previsto por causa da crise econômica mundial e do crescimento brasileiro abaixo do previsto. Isso mostra claramente que o governo prometeu a expansão da oferta com escolhas equivocadas. Essas escolhas equivocadas significaram mais custos e a única forma de cobrir esses custos é pegar do Tesouro Nacional para subsidiar o sistema elétrico. Isso porque não reduziu custos, fez péssimas escolhas e não priorizou a manutenção e a expansão adequadas. Agora usa dinheiro público para reduzir a tarifa elétrica. Com isso, 30 a 50 bilhões do Tesouro Nacional deixaram de ir para outras necessidades públicas. Quer dizer, reduz a conta dos consumidores e, em troca, o Tesouro deixa de cumprir outras obrigações, como melhorar a saúde pública, a educação, a infraestrutura em geral, etc. O setor elétrico virou um SUS. O SUS é um sistema muito bem concebido para garantir a saúde pública para todos, foi implementado com insuficientes recursos e deixa a população em situação precária. O setor elétrico foi muito bem concebido ao longo da década de 1940 e 1950 e, com a reforma feita em 2004, está se convertendo em um SUS. CC: Qual o balanço da atual gestão sobre o setor elétrico? ILS: É o balanço da gestão Dilma, não do Lobão, que é um instrumento dela. A responsabilidade intelectual entre a metamorfose do programa de governo do Lula em 2002 e o modelo de 2004 é da Dilma. E o responsável político foi o Lula. Isso tem consequências: nós temos uma energia cara, de baixa qualidade e com baixa confiabilidade. A Dilma aniquilou a capacidade técnica do Sistema Eletrobras e, com isso, mais gente está à mercê dos grupos econômicos que vão cada vez mais impor preços e custos à sociedade. Destruiu construções históricas, como a Eletrobras, e usou Furnas como muletas dos empreendimentos. Ninguém sabe quanto dinheiro está exposto, quando vai dar esse balanço no final. Por exemplo, a usina de Belo Monte. Lá, quase um terço da energia a ser vendida a Eletrobras teve de comprar por um preço de 135 reais o Megawatt. E o custo da energia eólica é de 100 reais. A situação é de destruição de instituições, não de utilização de recursos por ordem de mérito ou de um sistema de operação do sistema que use recursos mais caros e os vende mais baratos. Isso gera necessidade de subsídio, e a necessidade de utilizar termoelétricas e a instabilidade permanente. CC: É possível retomar o plano de 2002? ILS: Temos de retomar o planejamento, mapear nossos recursos, promover a redução dos custos de transação que nos expõem a riscos desnecessários. As soluções são fáceis, mas elas têm de ser implementadas. Primeiro, temos de reconhecer que o sistema está em crise e identificar os problemas que geram a crise. E resolvê-los. Nós temos recursos humanos, tecnológicos e naturais. Por que a área de Energia é tão disputada? Porque lá há um enorme excedente econômico e grandes benefícios e os parâmetros são turvados pelo tempo. Há uma mediação intertemporal e geográfica, depende da “água que está hoje”, “a chuva que vai acontecer”. Há poucos parâmetros arbitrários que dependem da decisão dos agentes públicos, que cedem em favor de quem faz pressão. Por isso o setor elétrico e energético se transformou em um campo de atuação de um império do lobby, do lobbynho e do Lobão. |