O que podemos esperar para o futuro da vida nas cidades?
No momento em que este artigo é escrito, ainda é difícil vislumbrar o mundo pós-pandemia de COVID-19 que se espalhou por todo o planeta em apenas 3 meses desde que os primeiros casos foram detectados na cidade Wuhan, naChina, em dezembro de 2019. Cenários distópicos de devastação humana e econômica gerenciados por regimes totalitários ainda caminham em paralelo a visões de sociedades que consigam voltar às ruas adotando padrões mais sustentáveis e seguros para seus hábitos, formas de produção, consumo e organização social. De qualquer forma, paira a impressão de que o mundo não será mais o mesmo e que precisaremos reorganizar uma parte significativa das nossas vidas coletivas e individuais. A paralisação das atividades em escala global em virtude da COVID-19 pode orientar saídas não apenas para a pandemia, mas também para outras urgências que estão batendo à nossa porta faz algum tempo, em especial as mudanças climáticas e a perseverante (e ainda brutal) desigualdade social.
Duas características do coronavírus fizeram com que esta pandemia se transformasse em um cenário que impôs medidas capazes de reduzir bruscamente o ritmo do planeta: o seu tempo de incubação, que pode chegar a 14 dias sem manifestar sintomas, e a sua alta taxa de transmissibilidade. Em outras palavras, quando uma pessoa descobre que está infectada, provavelmente já passou o vírus para diversas outras pessoas, provocando um crescimento exponencial da curva de contaminação. Por isso, a principal medida adotada por governos e autoridades de saúde pública é a determinação de uma quarentena no início da transmissão comunitária (a que acontece dentro de um país ou região).
Na cidade de Wuhan, a interrupção total das atividades durou 76 dias e a cidade ainda segue com uma série de restrições. Na Itália e na Espanha, países que registraram mais de 40 mortes por cada 100 mil habitantes, as restrições às atividades e à circulação também foram bastante severas e ainda seguem ativas. No Brasil, algumas cidades iniciaram a quarentena na segunda quinzena de março, fechando escolas, comércio, centros culturais e outros equipamentos e serviços, mas mantendo o funcionamento do transporte público. O modelo chinês contou com forte aparato estatal, que fez com que as pessoas permanecessem em suas vizinhanças, providenciando transporte apenas aos servidores de saúde e outros considerados essenciais. Na Itália, algumas regiões restringiram o transporte público às pessoas que justificassem a viagem, proibindo também deslocamentos entre cidades e províncias. O Brasil também adotou o caminho das atividades essenciais, ou seja, tem mantido abertos os serviços que realmente precisam funcionar para que a maior parte da população fique em casa. O transporte público seguiu operando para permitir que os funcionários dos serviços essenciais e a população conseguisse acessá-los.
“A definição de ‘atividades essenciais’ não é algo muito fácil. Para um hospital funcionar, por exemplo, além dos médicos e enfermeiros, é preciso alimentação, limpeza e outros serviços. Isso vale para a segurança pública, limpeza urbana, abastecimento e outras. Considerando essa dificuldade e também a natureza de atendimento universal do transporte público, é fundamental que sistemas de ônibus, metrôs e trens continuem funcionando. É imprescindível adotar estratégias de limpeza, monitoramento e dimensionamento da frota”, afirma Rafael Calábria, pesquisador em Mobilidade Urbana do Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC). O ideal é que este dimensionamento esteja alinhado com a estratégia geral da cidade para a quarentena e que seja realizado um monitoramento cotidiano dos fluxos. Reduzir drasticamente o número de veículos antes da diminuição do movimento de passageiros pode inclusive aumentar as taxas de contaminação. A Dinamarca, por exemplo, adotou a estratégia de aumentar a circulação de trens no início da contaminação comunitária para diminuir o contágio e depois foi reduzindo conforme as atividades eram fechadas nas cidades.
Menos passageiros, menos receita
Os impactos da COVID-19 no transporte já são brutais: em Nova York, por exemplo, o metrô recebeu 90% menos passageiros na primeira semana de abril se comparado ao mesmo período do ano passado. Na cidade de São Paulo, o número de passageiros dos serviços de ônibus caiu 70% na primeira semana de quarentena. Uma das consequências imediatas da redução da demanda é a perda de receitas tarifárias. Em Nova York, a agência estadual MTA que opera o metrô da cidade pediu um auxílio federal de 4 bilhões de dólares para os próximos 12 meses. O programa de auxílio financeiro emergencial do governo federal dos EUA prevê 25 bilhões de dólares para as agências de transporte. No Brasil, operadores de transporte solicitam 2,5 bilhões de reais por mês em ajuda emergencial e organizações da sociedade civil propõem mudanças na forma de remuneração do serviço.
Para Calábria, a crise do transporte público durante a pandemia irá impor mudanças na forma de organização do serviço no país. “A queda na receita tarifária expõe a fragilidade do modelo adotado no país, onde os sistemas de transporte coletivo em quase todas as cidades são sustentados apenas pela tarifa paga pelo usuário”, afirma o pesquisador, que defende a adoção de subsídios públicos e a remuneração das empresas pelo serviço (e não por passageiro, a forma mais comum no Brasil). Algumas cidades pequenas dos Estados Unidos nos estados de Nevada, Ohio e Vermont, que já possuem o transporte totalmente subsidiado, suprimiram o pagamento de tarifa durante a quarentena como forma de evitar aglomerações no embarque e para aliviar o peso financeiro da tarifa para os passageiros de baixa renda,que geralmente fazem parte do contingente de trabalhadores nos serviços essenciais.
O impacto econômico na vida das populações também é imenso. Para os trabalhadores formais existe o risco de demissão. Para os informais, ficar em casa pode representar o fim de qualquer renda. Empresas irão sofrer com a queda na demanda e diversos setores levarão muito tempo para se recuperar. Ao longo do último mês, quase todos os países têm discutido formas de auxílio econômico. Na Dinamarca e na Holanda, o governo vai cobrir entre 75% e 90% dos salários de funcionários em empresas que não realizem demissões. A Coreia do Sul também deve cobrir 70% do salário de empregados em alguns setores. Para Calábria, a melhor forma de evitar a propagação acelerada do coronavírus é a combinação do transporte público em atividade e a implantação de programas de renda mínima. “Precisamos entender que a frase completa é ‘fique em casa, se puder’. E para mantermos alguma estrutura de funcionamento da sociedade, uma parte das pessoas que trabalha nos serviços essenciais precisa sair de casa e, para elas, o transporte acessível e com segurança deve estar à disposição. Para as demais pessoas, é fundamental que exista algum conforto econômico, que garanta de fato a paralisação das atividades, garantindo a sobrevivência das famílias”, afirma. Diversas organizações como a UITP e a NACTO publicaram diretrizes para que o transporte público garanta a segurança de passageiros e trabalhadores contra o contágio.
Cidades depois da pandemia
Até agora o confinamento da população e o “freio de mão” imposto às atividades econômicas gerou mudanças significativas na paisagem e na vida das cidades. Por um lado, a vida dentro de casas e apartamentos tem provocado diversos distúrbios, dificuldades cotidianas e ansiedades, mas no espaço urbano encontramos ruas sem congestionamento, a diminuição do barulho e a redução da poluição. Olhar para as cidades durante a quarentena pode permitir vislumbrar novos cenários para o transporte. Algumas cidades como Berlim e Bogotá implantaram ciclovias temporárias. Outras, fecharam completamente ruas ao trânsito motorizado para aumentar a distância entre os pedestres circulando. A Nova Zelândia aprovou recentemente um fundo para ações de urbanismo tático que possam criar rapidamente ciclovias temporárias. Cidades que mantiveram os sistemas de bicicletas compartilhadas funcionando observaram um aumento significativo nas viagens. Em Nova York as viagens cresceram 67% em março, e em Pequim o uso aumentou 150% no mesmo mês. Até as botoeiras em semáforos de pedestres foram desativadas em algumas cidades para evitar o contato das mãos com superfícies.
Crises planetárias tendem a provocar remodelações profundas nas cidades. O exemplo mais emblemático talvez seja a reforma de Paris em meados de 1800, que abriu imensos bulevares na antiga cidade medieval, e foi motivada também como resposta sanitária aos efeitos da peste negra e das epidemias de cólera nas décadas anteriores. Vislumbrar cidades com melhor distribuição de espaço entre os diversos modos de transporte pode ser uma consequência positiva da pandemia de COVID-19.
A cidade italiana de Milão anunciou recentemente um plano para implantar imediatamente 35 quilômetros de ruas com melhor infraestrutura para pedestres e ciclistas e expandir significativamente a rede cicloviária nos próximos anos. Roma, Bruxelas, Paris e Berlim também planejam reduzir o espaço destinado aos automóveis, aumentando calçadas e ciclovias. Em Paris, o plano prevê 650 quilômetros de ciclofaixas e ciclovias, algumas delas temporárias, para o fim da quarentena. O escritório europeu da Organização Mundial de Saúde publicou recentemente algumas recomendações para a realização de deslocamentos cotidianos, entre elas utilizar a bicicleta ou caminhar sempre que possível.
As incertezas com relação à duração da atual pandemia (incluindo a descoberta de vacinas e remédios), a possibilidade de quarentenas intermitentes nos próximos meses e mesmo a possibilidade de mutação do vírus nos anos seguintes que podem causar novas ondas de isolamento social planetário fazem com que seja imperativo remodelar as vidas e as cidades considerando prioritariamente o que é essencial para a nossa sobrevivência e para a vida em coletivo. Ajustar os sistemas de transporte para que atendam às populações de forma eficiente e segura, reduzir as desigualdades para evitar o colapso de todo o organismo social, repensar padrões de produção e consumo e redistribuir o espaço urbano para os modos mais sustentáveis podem ser alguns aprendizados desta primeira pandemia do século XXI. Com isso, é possível que nos tornemos mais resilientes aos próximos momentos de emergência.
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