NOTA TÉCNICA
epartamento de Saneamento e Saúde Ambiental/DSSA, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/ENSP, da Fundação Oswaldo Cruz/Fiocruz, há seis décadas, desenvolve e difunde conhecimentos técnicos e científicos em atividades de ensino, pesquisa, prestação de serviços e cooperação técnica, buscando contribuir para o desenvolvimento de ações relacionadas ao saneamento e à saúde ambiental, em especial à qualidade da água, do solo e do ar, visando à melhoria das condições de vida e saúde da população das áreas urbanas e rurais do país.
O DSSA é constituído por 45 profissionais qualificados, a maioria com o título de doutor. Em sua lista de egressos há um grande número de técnicos, especialistas, pesquisadores e gestores públicos que atuam significativamente na melhoria contínua do quadro sanitário brasileiro e no fortalecimento do Sistema Único de Saúde/SUS.
Neste sentido:
Considerando a relevância histórica do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental na participação para a construção de políticas públicas de saneamento;
Considerando os impactos positivos das ações de universalização dos serviços de saneamento à saúde humana e ambiental;
Considerando o agravamento das consequências do Covid-19 relacionadas à deficiência de acesso aos serviços públicos de saneamento;
Considerando o acesso à água como um direito humano universal reconhecido pela ONU;
Considerando a necessidade de substancial aporte de capital público a ser investido no processo de universalização do saneamento;
Considerando a grande disparidade das condições de pagamento de tarifas dos usuários do Estado do Rio de Janeiro;
Considerando a falta de segurança jurídica do processo de transferência de concessão da Cedae;
Considerando a ausência e/ou a baixa qualidade dos dados sobre os serviços públicos de saneamento;
Considerando a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.842 do Rio de Janeiro;
Considerando a Ação Civil Pública nº 5036779-30.2019.4.02.5101/RJ;
Considerando as diretrizes nacionais para o saneamento básico; cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico (Lei 11.445/2007);
Considerando a recente aprovação e sanção do novo marco regulatório do saneamento (Lei 14.026/20)
O Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental/DSSA/ENSP/Fiocruz emite esta Nota Técnica com as contribuições de seus pesquisadores, lastreadas na ciência, nas melhores práticas e nos fatos, referentes à documentação disponível na consulta pública sobre a transferência de Concessão da Prestação Regionalizada dos Serviços Públicos de Fornecimento de Água e Esgotamento Sanitário e dos Serviços Complementares dos Municípios do Estado do Rio de Janeiro.
1. Modelos de Concessão
Os modelos de blocos e de planos de negócios apresentados pelo BNDES reproduzem, sem a devida adequação à área de saneamento, os modelos de privatização de infraestrutura que foram utilizados nas concessões de rodovias e de aeroportos. Frequentemente, essas concessões apresentam desequilíbrio econômico-financeiro, estão sendo revertidas e/ou prestando serviço inadequado (tarifa/qualidade). A lógica desse tipo de modelagem de serviço público era compensar financeiramente serviços deficitários e superavitários para atender a decisões políticas, além de criar o ingresso de receita nos poderes concedentes famintos.
Ressalta-se que na modelagem do processo da Cedae existem obscuridades e ilegalidades que serão judicializadas, gerando enorme insegurança jurídica, perpassando desde a questão constitucional da titularidade até a legitimidade para participação no processo. Algumas dessas violações já foram levantadas na ação civil pública proposta pela Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro.
No item 36 da minuta de contrato de concessão dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário nos municípios por bloco apresentado pelo BNDES estão previstos pagamentos a título de outorga fixa e de outorga variável aos Municípios e ao Estado do Rio de Janeiro pelas concessionárias. Obviamente, este pagamento se dará de forma indireta, pois o real pagador por outorga serão os usuários, via majoração de suas tarifas. No entanto, essa cobrança não encontra qualquer fundamento técnico, jurídico ou econômico em prol da sustentabilidade do serviço público concedido. É insustentável remunerar um poder concedente por sua incapacidade de prestar um serviço de saneamento deficitário que carece de subsídio cruzado para ser viável. Essa transferência indevida de recursos dos usuários para o poder concedente gera maior necessidade de aporte de capitais e insegurança jurídica, além de penalizar majoritariamente os usuários do município do Rio de Janeiro que são os verdadeiros garantidores de todo esse processo de transferência de concessão.
Adicionalmente, o Project Finance (Capex e Opex) dos investidores privados, alvo de todo este processo, não internalizam a maioria dos benefícios dos investimentos de saneamento, que serão auferidos integralmente pelos poderes concedentes. Além desses benefícios (e.g. redução de doença, valorização imobiliária, melhoria de qualidade de vida) difíceis de serem quantificados, há ingressos de receitas tributárias para os poderes concedentes sobre os patrimônios e os serviços concedidos.
2. Indicadores Econômicos
A documentação desta consulta pública pelo BNDES não apresenta Laudo de Cisão (Termo de Cisão) realizado por empresa especializada, que teria o intuito de apurar e de informar o patrimônio por bloco e por tipos de serviço, violando os princípios da publicidade e da transparência. Este laudo serviria para dirimir dúvidas e validar as projeções apresentadas e suas garantias de operação, além de mostrar como ficará o passivo atuarial e os ativos em garantia, pois existem obrigações presentes e futuras que devem ser cumpridas pela atual CEDAE. Estas informações têm como objetivo assegurar o cumprimento do princípio do equilíbrio orçamentário do Estado do Rio de Janeiro.
Nesse sentido, faz-se necessário apresentar projeção dos balanços anuais para o período de pós transferência de concessão, não somente dos blocos licitados, mas também da parte que restará da CEDAE, a fim de ver se impactará positiva ou negativamente as finanças do Estado. Além disso, os valores de CAPEX e OPEX, devem ter metas e devem ser registrados e acompanhados por tipo (manutenção e expansão); com definições claras e sistemática de contabilização e controle para apuração e validação dos valores apresentados como investimentos.
3. Proteção dos mananciais
O manancial utilizado para captação de água deve ter qualidade adequada ao bom funcionamento operacional da estação de tratamento de água (ETA). A poluição dos mananciais torna o tratamento dessas águas mais oneroso através do tratamento convencional, além de, muitas vezes, não conseguir tornar a água potável, porque diversos poluentes não conseguem ser removidos satisfatoriamente, tais como: antimônio, bário, cromo hexavalente, tálio, derivados de petróleo, pesticidas, herbicidas e substâncias radioativas. Para evitar esses problemas, municípios maiores em países centrais financiam Wikimedia. o tratamento de efluentes em regiões vizinhas visando à proteção das bacias hidrográficas. Assim, as águas desses mananciais passam a atender pelo menos requisitos similares à classe 2 da Resolução CONAMA 357/05, simplificando o processo de tratamento.
Adicionalmente, as soluções escolhidas pelos órgãos ambientais exigem que as estações de tratamento de esgoto apenas atendam às legislações de descarte de efluentes sem garantir que a classe do manancial seja preservada, pois dependendo da diluição obtida no corpo hídrico os padrões não serão atendidos. A concentração de contaminantes nos corpos hídricos devido à poluição difusa e/ou as características geológicas e biológicas não é desprezível, além disso, a vazão dos corpos hídricos varia ao longo do ano, sendo necessário exigir que sejam atendidos parâmetros mais restritivos que os da legislação de lançamento de efluentes de forma a garantir a preservação da qualidade ambiental do corpo receptor.
Devido à relação entre a qualidade da água obtida depois do tratamento da água, o custo do tratamento e a qualidade da água do manancial que abastece a ETA, é preciso que a empresa concessionária apresente um planejamento de longo prazo para aprimorar a qualidade da água dos mananciais, reduzindo os custos do tratamento e melhorando a água fornecida à população. Este planejamento, que não está presente na documentação do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), deve ser participativo, incluindo os órgãos ambientais nas diferentes esferas, as companhias responsáveis pelas ETA, os Comitês de Bacias e os representantes da sociedade.
Adicionalmente, as soluções escolhidas pelos órgãos ambientais exigem que as estações de tratamento de esgoto apenas atendam às legislações de descarte de efluentes sem garantir que a classe do manancial seja preservada, pois dependendo da diluição obtida no corpo hídrico os padrões não serão atendidos. A concentração de contaminantes nos corpos hídricos devido à poluição difusa e/ou as características geológicas e biológicas não é desprezível, além disso, a vazão dos corpos hídricos varia ao longo do ano, sendo necessário exigir que sejam atendidos parâmetros mais restritivos que os da legislação de lançamento de efluentes de forma a garantir a preservação da qualidade ambiental do corpo receptor.
4. Investimento Socioambiental
Em 1983, foi criado o Programa de Favelas da CEDAE (PROFACE) com o objetivo de atender as comunidades de baixa renda do Estado do Rio de Janeiro em quatro níveis de intervenção: parcial (pequenas melhorias ou ampliação de atendimento); global (áreas desprovidas de sistemas); fornecimento de materiais e assistência técnica para realização de obras de iniciativa da comunidade e também operação e manutenção dos sistemas de bombeamento de água existentes.
No esgotamento sanitário, em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro, foram realizadas obras em regime de mutirão utilizando tecnologias de baixo custo. Em 1985, a partir dessa experiência, foi instituído o Programa Mutirão em parceria com a Secretaria Municipal de Obras que já beneficiava 85 comunidades nos municípios do Rio de Janeiro e de Niterói. Em 1994, já havia 216 comunidades atendidas pelo programa.
Essas intervenções transferiam para CEDAE os direitos sobre o abastecimento de água e exigiam que as comunidades fornecessem a mão de obra necessária e o cadastro de moradores, além de garantir o pagamento de tarifas mensais mínimas de 15 m3 por domicílio no valor de R$12,50 que inclui o abastecimento de água e o esgotamento sanitário. O Decreto Estadual 25.438/99 reduziu o consumo mensal estimado para a 6 m3, resultando numa tarifa social de R$ 5,50 por domicílio.
Em 1990, o Programa de Saneamento para Populações de Baixa Renda (PROSANEAR) instituído pela Caixa Econômica Federal em cooperação com o Banco Mundial reforçou o orçamento da CEDAE para atuação nas áreas de baixa renda. Entretanto, apesar de orçamento vinculado, a CEDAE reduziu o percentual investido nas comunidades de baixa renda de 8% em 1996 para 4% em 1999, implicando num montante insuficiente para suprir as necessidades de investimentos nas áreas mais carentes.
Portanto, considerando esse histórico do investimento socioambiental na CEDAE, não foram
encontradas garantias de que os investimentos ocorrerão nas áreas mais carentes em toda a
documentação disponibilizada no processo de transferência de concessão conduzido pelo BNDES, depreendendo-se que a universalização não ocorrerá nessas áreas.
5. Universalização nos Aglomerados Subnormais
A universalização dos serviços públicos de saneamento está ligada às desigualdades sociais das cidades brasileiras e no estado do Rio de Janeiro não é diferente. Reduzir as desigualdades e o racismo estrutural marcado pelo acesso diferenciado entre moradores dos aglomerados subnormais e dos locais formalizados é um grande desafio.
Nos documentos da consulta pública conduzida pelo BNDES há uma descrição da evolução temporal das metas de atendimento global do município. Mas, não há o devido detalhamento de como ocorrerão as metas de universalização nas áreas descritas como irregulares (favelas e aglomerados subnormais) e nem mesmo há informação de quais são os investimentos esperados nessas áreas irregulares em cada bloco de concessão.
Por isso, presume-se que ao ignorar as pessoas dessas áreas, o projeto coloca em risco a saúde de uma parcela significativa de nossa população, assumindo-se que o acesso a água é um direito humano fundamental reconhecido pela ONU, sendo atividade essencial para reduzir a desigualdade e proporcionar um caminho para uma vida mais saudável para todos.
Portanto, faz-se necessário garantir que os municípios mantenham suas titularidades constitucionais dos serviços de saneamento, estabelecendo critérios para a distribuição dos investimentos nas áreas irregulares. No modelo de concessão proposto não está claro como será a distribuição de investimentos em cada bloco. Não se deve deixar essa política de inclusão social somente sob a responsabilidade das concessionárias, porque se trata de uma questão estratégica de gestão pública.
Neste sentido, propõe-se que o processo de transferência de Concessão da Prestação Regionalizada dos Serviços Públicos de fornecimento de água e esgotamento sanitário e dos serviços complementares dos municípios do Estado do Rio de Janeiro, seja mais participativo, incluindo instituições que defendam o interesse público, como a Fundação Oswaldo Cruz.
6. Controle Social
A Lei 14.026/2020 define o controle social como atividade essencial ao saneamento básico. Apesar de enormes carências, os Conselhos Municipais de Meio Ambiente passaram a exercer esse controle social, porque os quadros técnicos das prefeituras nos municípios do interior serem deficitários. O que se propõe é que o controle social deva ser amplo, de forma a incluir instituições e grupos que sejam representativos, estruturados e defendam interesses públicos legítimos. Nesse tipo de controle social a sociedade consolida seu papel participativo.
Um exemplo de instituição que deve fazer parte desse controle social ampliado nas ações de saneamento no Estado do Rio de Janeiro, são os comitês de bacia hidrográfica, que zelam pela qualidade das águas, possuindo abrangência e legitimidade nas 9 (nove) regiões hidrográficas do estado, com representantes dos três segmentos: poder público, usuários de água bruta e sociedade civil organizada.
Quanto à publicidade dos serviços prestados, os comitês têm um Plano de Bacia em que expõem suas diretrizes e metas na gestão dos recursos hídricos da sua área de atuação, possuindo sítios eletrônicos, planos de comunicação e espaço nas mídias sociais, que contribuem para que a sociedade tenha acesso amplo às informações.
Além disso, os comitês, por força de lei, exercem o papel de primeira instância para dirimir conflitos de uso das águas, prevenindo impactos às águas de nascentes e/ou aos mananciais de abastecimento, priorizando a qualidade dessas águas para propiciar os usos múltiplos. Os comitês fazem o monitoramento dos contratos de concessão, atuando em harmonia com os Ministérios Públicos, caso haja necessidade de resolver conflitos jurídicos por violação de cláusulas contratuais, metas e objetivos, convocando tanto o titular do serviço (município) quanto o contratado (concessionária pública ou privada).
7. Reestatização do Saneamento
Nos últimos vinte anos há um movimento global de reestatização dos serviços urbanos de saneamento (água e esgoto). Várias cidades no mundo optaram por reestatizar devido à insuficiência e má qualidade dos serviços prestados por grupos financeiros privados. Entre os problemas observados estão a falta de investimentos em infraestrutura, aumento significativo de tarifas, deficiência de serviços e a extensão de danos ambientais.
Em 2000, três municípios já haviam optado pela remunicipalização, chegando a um total em 2015 de 235 serviços de saneamento remunicipalizados em 37 países. Municípios optaram por recuperar estes serviços, esperando pelo fim do contrato de prestação de serviços ou mesmo preferindo pagar a multa rescisória, devido ao grau de insustentabilidade dos serviços prestados.
A reversão destes processos é bastante onerosa. Em Berlim, o Estado para reverter o processo, negociou o pagamento de 1,3 bilhão de euros pela população no prazo de 30 anos. No caso do Brasil, um gasto como esse poderia representar menos recursos para levar serviços de saneamento a lugares onde ainda há falta de acesso. Menos recursos aplicados em saneamento significa mais gastos com saúde para tratar doenças evitáveis.
Ao se transferir um serviço público para o setor privado torna-se mais difícil a implementação de políticas públicas socialmente abrangentes, capazes de aumentar a extensão deste serviço para áreas carentes, pois estas não dariam retorno financeiro, visto que grupos privados visam principalmente alcançar a rentabilidade de seus investimentos.
O Estado do Rio de Janeiro está em vias de transferir a concessão dos serviços de saneamento para o setor privado, enquanto vários locais no mundo estão trazendo de volta para o âmbito estatal. Portanto, esse processo conduzido pelo BNDES está na contramão da evolução histórica. Por isso, para garantir que um serviço público tenha boa qualidade, seja socialmente abrangente e ambientalmente sustentável, beneficiando as gerações atuais e futuras, é necessário, aprender e incorporar as experiências e as práticas malsucedidas de outros países.
Pesquisadores do DSSA que contribuíram para elaboração desta Nota Técnica (em ordem alfabética): Araujo, M.; Cordeiro, A.; Cynamon, S.; Facchetti, R.; Kligerman, D.; Silva, D.; Sales, M.J.; Soares, V.; Sotero-Martins, A.; Thaumaturgo, C.; Veiga, M.
A presente Nota Técnica foi aprovada na reunião do CD/DSSA, de 23 de julho de 2020, conforme registrado em Ata.