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Modernidade madura, alternativa, brutalista, plural

Ruth Verde Zein - Portal Vitrovius - 13 de maio de 2014 1260 Visualizações
 Modernidade madura, alternativa, brutalista, plural
Os anos 1960 são uma década que transborda seus limites temporais. E passado mais de meio século, estão mais vivos do que nunca. No cenário arquitetônico e urbano contemporâneo esses legados vêm sendo revalorizados e tornaram-se peças fundamentais nas atividades de proposição criativa. E o reconhecimento desse patrimônio, uma chave fundamental para a compreensão crítica do panorama atual.
Até há pouco tempo, a variedade de arquiteturas e debates que caracterizaram aquela década ampliada ainda estavam grandemente esquecidos; e mesmo hoje, em meados da segunda década do século 21, ainda não se atingiu um ponto suficiente de saturação que permita admitir que já estejam suficientemente; com a honrosa exceção de alguns poucos exemplos icônicos. Enquanto isso, a complexidade e importância dos variados e complexos fenômenos arquitetônicos dos anos 1955-75 ainda seguem submetidos, grosso modo, a interpretações redutoras e a visões negativas, desatualizadas - armadas que foram nas décadas de 1980-90 por luminares da então chamada historiografia “crítica”. Vistos de hoje, nota-se mais claramente o quão frequentemente essa visão dita “crítica” tende a desconsiderar boa parte da riqueza de manifestações da desbordada década dos anos 1960, superficialmente rotulando-os como “modernidade tardia”; cuja suposta decadência parecia anunciar o fim do moderno. Uma cristalização apressada e superficial, hoje já obviamente anacrônica; e que necessita urgentemente ser revista e superada.
No Brasil, como em todo mundo, trata-se de um período dos mais férteis de produção moderna, de superposição e embate de variadas e diversas tendências. Onde se destacam inúmeras obras de qualidade, anunciando propostas e pesquisas materiais, técnicas e conceituais que ainda são da maior relevância. E afinal de contas, pode-se até mesmo aprender com a revisão de seus eventuais desacertos – especialmente se forem reconsiderados criticamente, sem porém prejuízos a priori.
Mas o interesse nessa década não é apenas histórico, nem muito menos, passadista. Muitas das mais relevantes manifestações contemporâneas, da arquitetura brasileira e internacional, somente podem ser corretamente compreendidas a partir de uma revisão abrangente e aprofundada desse patrimônio e legado dos anos 1955-75.
As experiências situacionistas com suas técnicas do desvio (1958-72) seguem informando variados fenômenos culturais e arquitetônicos da contemporaneidade. A linguagem do brutalismo, que bebe e extrapola as lições corbusianas, começa a se afirmar nos anos 1950 e se expande exponencialmente nas duas décadas seguintes, em toda parte do mundo (e não! o exame dos fatos mostra que os ingleses não vieram antes...). Seu legado formal, estrutural e visual vem sendo recuperado e transubstanciado de diversas maneiras, por uma nova geração de arquitetos contemporâneos - também situados em todo o planeta. As utopias urbanas visionárias de grupos como os Metabolistas, Archigram e outros estão presentes, de maneira explícita ou indireta, nos discursos e desenhos atuais que pretendem ativar soluções ecológicas e sustentáveis. As discussões teóricas do século 21 sobre processos de ensino e de projetação, nas escalas que vão do objeto à paisagem, também afincam suas raízes em contribuições levadas a cabo, inicialmente, na profícua e extensa década de 1960.
Por outro lado, as obras modernas realizadas nos anos 1955-75, já cinquentenárias, necessitam urgentemente ser revisitadas, e sua condição de patrimônio cultural reconsiderada. Naturalmente, isso tampouco se poderá fazer sem examiná-las à luz das novas exigências de conforto e habitabilidade, dos novos desenvolvimentos tecnológicos e materiais contemporâneos e da necessidade inevitável da sua adaptação a novos usos e programas. O equilíbrio entre manter e renovar, sempre difícil, sempre precário, sempre instigante e criativo, terá muito o que fazer ao se debruçar sobre essas obras dos sessentas, tão singulares e radicais. Pois para fazê-lo, será preciso considerar tais obras compreendendo, também, a força de sua vontade de ativar experimentos inovativos, embebidas que estavam no clima intelectual contestador e alternativo dos anos 1960 – frequentemente, ao custo da fragilização de suas manifestações materiais.
Por tudo isso e mais, essas obras da ampla década dos anos 1960 tornaram-se alvo fácil, em todo mundo, tendo frequentemente recebido de acerbas críticas quanto à sua qualidade e interesse, por parte de estudiosos e leigos – um clima que terminou gerando, especialmente em alguns ambientes internacionais, amplas dúvidas sobre a oportunidade da sua permanência. Mas sem uma ponderação cuidadosa e crítica e sem uma ampla revisão dos paradigmas historiográficos vigentes através dos quais ainda se estuda, de maneira incompleta e imperfeita, esse período, a tarefa de valorizar e preservar, ou não, essas obras de arquitetura, balança entre surtos de interesse e radicalidades excludentes, ambos frequentemente desinformados. E se esse desconhecimento sistêmico não for ultrapassado por muitas, variadas e consistentes pesquisas, o pouco (e mal) que se sabe só poderá vir a fomentar enganos de avaliação. Que talvez, infelizmente, só serão percebidos quando já for irremediavelmente tarde demais.
O X Seminário Docomomo Brasil aconteceu em outubro de 2013 em Curitiba; convocou mais de 200 estudiosos e pesquisadores da arquitetura e cultura material e urbana dos anos 1955-75, que apresentaram uma ampla variedade de propostas. Embora fosse um evento brasileiro, abriu-se à participação de quaisquer interessados e ganhou dimensões internacionais importantes, e a presença de conferencistas de alto nível. Seu foco foi o brutalismo – essa tendência moderna e internacional que marca fundamente, embora não exclusivamente, os anos 1955-75. Esta edição traz uma pequena mas excelente amostragem de alguns dos trabalhos ali presentes. Ainda há muito a se fazer, dizer, pesquisar, divulgar. Mas já estamos no caminho.
(Ruth Verde Zein, arquiteta pela FAUUSP, mestre e doutora, PROPAR-UFRGS, professora na graduação e pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi membro do Comitê Organizador do X Seminário DOCOMOMO-BR, em 2013)