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Cem anos de segregação

Felipe Neves - Carta Capital - 13 de maio de 2014 1367 Visualizações
 Cem anos de segregação
O ano era 1958. O jovem jornalista Audálio Dantas, nos seus primeiros anos de reportagem, enfiava os sapatos na lama para tentar entender como pessoas poderiam se aglomerar em um terreno, sob barracos de madeira, sem as mínimas condições de saneamento. Era a primeira vez que ele pisava na favela do Canindé, na Zona Norte da cidade, às margens do rio Tietê.
Entre crianças com os pés diretamente no chão, velhos com a saúde degenerada e mulheres lavando roupas em tanques improvisados, uma certa negra chamou a atenção do repórter. Tratava-se de Carolina Maria de Jesus, a favelada que viria a se tornar a escritora pioneira da literatura dita “marginal” no Brasil.
Sua principal obra, que chegou às editoras graças à intervenção de Audálio, era um compilado de reflexões sobre o cotidiano ingrato em que ela tentava sobreviver, catando lixo para sustentar, sozinha, seus três filhos. Para Carolina, a favela se traduzia como o símbolo do descaso com o que não se quer ver. Uma espécie de tapete para onde é empurrada a maior parte dos problemas da cidade. Um verdadeiro Quarto de Despejo.
Meio século depois, qualquer olhada nos mapas de análise urbanística e social de São Paulo revela que a visão da escritora à época ainda não mudou completamente. “O padrão centro-periferia ainda persiste”, argumenta o urbanista Kazuo Nakano. Durante uma de suas apresentações, ele demonstra que a cidade possui uma espécie de anel no entorno de seu centro, comportando a maioria das favelas da capital. Assentamentos irregulares e áreas de risco ajudam a espessar o círculo. As exceções são os cortiços, majoritariamente localizados no centro, mas que, pela pouca estrutura que possuem, acabam por se tornar uma espécie de “periferia centralizada”.
Obviamente, se observadas in loco, essas realidades parecem distantes da relatada por Carolina. Mas mesmo com mudanças significativas na qualidade de vida da população que vive longe do centro – os níveis de acesso precário a água, esgoto e tratamento de lixo são extremamente baixos na periferia, quase não chegando a 1% – o que se constata é que a favela ainda precisa encontrar alternativas geradas dentro de si mesma para resolver seus problemas.
As comunidades ainda se perpetuam como forma de organização urbanística próprias da periferia. De 2000 a 2007, o crescimento populacional nessas regiões alcançou incríveis 660% acima da média da capital.
Mais do que ampliar o número de barracos de madeira, no entanto, para inflar tanto as favelas precisaram adotar um modos operandi recorrente dos bairros nobres. Uma frase da música Grajauex, do rapper Criolo, ilustra bem o que aconteceu ali. “The Grajauex, Duas laje é triplex”, diz ele para ilustrar a verticalização da periferia, processo que tratou de elevar os níveis de adensamento da periferia a níveis nunca antes alcançados. As favelas têm 65 mil habitantes por km² na cidade – no distrito da Bela Vista, com a maior densidade da capital, há 23 mil pessoas distribuídas no mesmo perímetro.
A diferença, no entanto, é que o aumento da densidade demográfica nas regiões de classe média da cidade é estimulado com implantação de infraestrutura de transportes, saúde educação. Nas periferias, o que ocorre é o inverso. Primeiro, chegam os moradores. Dias ou décadas depois, os serviços.
“Crescer para cima” foi a maneira que comunidades encontraram para existir comportando seu crescimento exponencial. Mas também é uma resposta à pouca ação do poder público para resolver seus problemas. Hoje, existem cerca de 440 mil domicílios nas favelas da capital. Deste número, somente 10% sofreram processo de urbanização. Outros 17% estão passando por modificações. Nos 70% restantes, nenhuma intervenção tem sido feita. Mais do que isso, cerca de 80% dessas áreas ainda não receberam título de concessão, o que significa dizer que estão irregulares.
“O loteamento periférico clandestino foi uma das principais formas de alocação de moradia nas periferias ao longo do século passado”, relembra Kazuo. Apesar de terem surgido pelo processo de crescimento desenfreado da cidade, problemas como esse também continuam a existir.
Um exemplo está na Vila Nova Palestina, na Zona Sul, comunidade com cerca de 8 mil famílias que vivem em um terreno de 1 milhão de m², sem quaisquer condições de saneamento. A área havia sido destinada à construção de um parque pela Prefeitura. Sob pressão dos movimentos de moradia, o prefeito Fernando Haddad prometeu conceder a área à população assim que Plano Diretor da cidade for aprovado na Câmara.
Em 2014, Carolina Maria de Jesus completaria 100 anos. Numa entrevista, sua filha, Vera Eunice, uma das protagonistas do diário, revela o desconforto ao ver que a realidade em que viveu com a escritora ainda persiste. “Eu achava que as abordagens do livro se tornariam obsoletas. O problema é que quase tudo que minha mãe viu e escreveu ainda está aí, na nossa frente.”
(Felipe Neves é estudante de jornalismo da PUC. Tem 20 anos e mora em São Paulo.)