Goldberg: "Éprecisoassegurar que as futuras tecnologias sejam algo que desejamos, não algo que tememos"
Acervo pessoal
“Sim, os engenheiros aplicam a ciência algumas vezes, mas a prática numa situação determinada é mais frequentemente baseada em reflexão e conversa. A quantidade de conversa é enorme – e nós ensinamos os engenheiros a conversar?” A provocação é do professor David E. Goldberg, que é também engenheiro e um dos pioneiros da inteligência artificial. Goldberg, que lecionou em universidades americanas por quase 30 anos, prega mudanças na educação que proporcionem aos estudantes experiências arrebatadoras, que estimulem o engajamento.
Velho conhecido e parceiro de professores da Escola de Engenharia da UFMG, ele participa hoje (terça, 28), em sessão com estudantes, doCongresso brasileiro de educação em engenharia, organizado pela UFMG e pela Abenge. Nesta entrevista concedida por e-mailao Portal UFMG, Dave Goldberg recomenda cuidado para que a tecnologia não sufoque a humanidade dos profissionais, afirma que o Brasil, depois de mudanças na regulação, está pronto para harmonizar suas iniciativas com os padrões internacionais e defende que as universidades cujo modelo é o da convivência nos campi precisam “achar um caminho para oferecer uma experiência emocional-cultural de muita proximidade, junto com formação técnica de excelência, repleta de oportunidades de prática”.
Por que é importante discutir o ensino de engenharia, no mundo e particularmente no Brasil?
O mundo que habitamos é cada vez mais marcado pelo que chamo dedigital gaggle, que é o conjunto crescente de computadores, robôs, smartphones, aplicativos, sistemas de inteligência artificial, aprendizado de máquina e outros dispositivos que usamos diariamente. Se, por um lado, são muitas as coisas maravilhosas que odigital gagglepossibilita, por outro lado, de muitas maneiras, como resultado dessas tecnologias, o mundo se torna menos humano, menos cuidadoso e menos emocionalmente conectado. Se nós, seres humanos, devemos usar, e não servir a esse aparato, é importante que formemos engenheiros curiosos e capazes no sentido mais abrangente, não apenas técnicos ou especialistas. Falo de engenheiros-humanos que compreendam os benefícios da tecnologia e também os perigos associados a ela.
No Brasil, esse debate é especialmente importante, por causa das mudanças regulatórias que agora viabilizam harmonizar a educação em engenharia no país com os padrões internacionais. Quando mudam os padrões e a arquitetura educacional, torna-se possível dar passos significativos na direção da educação holística a que me referi. Entretanto, quando a universidade pensa em educação em engenharia, normalmente olha para o passado, ignorando que o mundo mudou e demanda algo muito diferente. A comunidade do ensino de engenharia no Brasil tem agora, com a evolução da legislação, a chance de refletir sobre esse estranho mundo novo e sobre as mudanças necessáriaspara assegurar que as futuras tecnologias sejam algo quedesejamos, não algo que tememos.
Dave Goldberg (de blazer) com o professor Alessandro Fernandes (de camisa social) e estudantes, durante temporada de trabalho na UFMG
Acervo pessoal
O senhor já disse que, em tempos de conhecimento disponível on-line e em que muitos empreendedores de sucesso incentivam os estudantes a dispensar a universidade, é preciso reafirmar o valor de um diploma universitário em engenharia. Pode explicar?
Congressos sobre a educação em engenharia tendem a enfatizar o conteúdo que é ensinado pelos professores, a maneira como ensinam e as formas como nos organizamos em faculdades e universidades (departamentos, escolas). Me parece, porém, que em 2021 tudo isso é muito acessível. Muitos dos empreendedores mais bem-sucedidos no nosso tempo não passaram pela universidade, e muitos deles, como Peter Thiel [cofundador do PayPal], encorajam outros estudantes a fazer o mesmo. Qualquer assunto que se queira aprender está disponível on-line, de graça ou a custo muito baixo – qual é, então, o valor de um diploma universitário? Alguns estudantes aprendem a codificar em escolas específicas e conseguem bons empregos sem passar muitos anos na universidade. Esses são desafios reais à forma como se conduz o ensino de engenharia, e ainda vejo muito pouco debate sobre esses temas.
Antes da pandemia, dei algumas palestras e coordenei discussões com a temática O apocalipse zumbi da universidade. Os estudantes e as empresas que os contratam estão achando modos de contornar a burocracia lenta das universidades. Como essas instituições são financiadas por governos ou pela filantropia, elas vão permanecer, mas vão se parecer cada vez mais com zumbis, porque mais e mais clientes seus vão procurar aprender em outros lugares. O lockdown imposto pela covid-19 expôs a fragilidade da universidade em sua corrida desvairada para levar para o ambiente digital conteúdos velhos e cansados. Se as universidades não são mais que entregadoras de conteúdo, há modos mais eficientes de fazer essa entrega. De outro lado, se essas instituições estão prontas para usar a vantagem proporcionada pelo contato pessoal e direto entre as pessoas, isso não vai se dar em auditórios para mil pessoas ou em outros cenários de educação de massa.
Para sobreviver, as universidades baseadas na convivência nos campi precisam achar um caminho para oferecer uma experiência emocional e cultural de muita proximidade, junto com formação técnica de excelência, repleta de oportunidades de prática. Se não o fizer, aqueles que concorrem com a formação acadêmica vão seguir ganhando espaço.
Quais são as principais características dos engenheiros formados atualmente, e o que deve ser feito para mudar esse perfil?
A educação universitária é apoiada numa mentira ou, na melhor das hipóteses, numa meia-verdade. Engenheiros aprendem que a engenharia é meramente a aplicação da ciência (teoria) a situações determinadas (prática). O problema é que, sim, os engenheiros aplicam a ciência algumas vezes, mas a prática numa situação determinada é mais frequentemente baseada em reflexão e conversa. Engenheiros falam com os clientes, com outros engenheiros, com o pessoal do marketing, com gente de negócios. A quantidade de conversa é enorme – e nós ensinamos jovens engenheiros a ser ótimos em conversar? A verdade é que não. Em vez disso, levamos esses jovens a pensar que a prática da engenharia se limita à aplicação da ciência, e eles saem afobados, nos seus primeiros anos de trabalho, influenciados por essa educação falseadora e empobrecida.
Costumo dar aos estudantes cinco recomendações básicas para se tornarem grandes engenheiros: saiba que a boa prática tem reflexão e conversa, além da teoria; combine cabeça, coração e mãos; use a linguagem como ferramenta descritiva e criativa; faça pequenas apostas (experimentos) antes de fazer grandes planos; gerencie as diferenças antes de resolver os problemas. Engenheiros que combinem o aprendizado da técnica com essas cinco recomendações serão difíceis de superar.
Cite, por favor, algumas experiências internacionais bem-sucedidas.
Meu livro A whole new engineer: the coming revolution in engineering education (Goldberg & Somerville, 2014) conta a história que conecta a Olin College à University of Illinois, nos Estados Unidos – ambas as escolas merecem ser estudadas. Muitas escolas basearam seus esforços de reforma no ensino desse livro, e o Insper, em São Paulo, foi muito bem-sucedido na adaptação do modelo de Olin ao ambiente brasileiro. Algumas iniciativas da UFMG foram inspiradas no programa iFoundry [Illinois Foundry for Innovation in Engineering Education], da University of Illinois, e o projeto ENG200 [programa que busca a inovação no ensino, valorizando o protagonismo dos estudantes], da Escola de Engenharia, tornou-se referência global quando se fala no engajamento estudantil.
A University of Twente, na Holanda, criou diversos programas para engenheiros. A University of Technology Sydney (UTS), na Austrália, usou o aprendizado colaborativo para aumentar a motivação dos estudantes e incrementar suas habilidades interpessoais, com atividades in situ, o que gerou uma iniciativa de atenção aos estudantes que é única no mundo. Em meu novo livro, que será lançado no ano que vem, pretendo mostrar como docentes e discentes podem trabalhar juntos para criar novos programas capazes de contribuir para o desenvolvimento do atual ambiente educacional.