Vivemos uma emergência habitacional em São Paulo, diz Rolnik
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18 de novembro de 2014
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A prefeitura de São Paulo começou a aplicar há duas semanas uma série de sanções para os proprietários de imóveis sem uso na cidade.
Caso não deem uma finalidade ao imóvel, os donos correm o risco de terem aumento no IPTU ou até perderem a propriedade. A primeira leva de notificações tem 78 endereços. Um dos objetivos principais é liberar edifícios vazios para moradia popular no centro.
Para a urbanista Raquel Rolnik, a iniciativa chega atrasada e é fundamental para melhorar a qualidade urbanística da cidade. Raquel é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e foi relatora especial da ONU para o direito à moradia.
Em entrevista a EXAME.com, a professora dá exemplos de outros países que possuem medidas semelhantes. No entanto, para ela, não basta conseguir liberar os imóveis para uso. “É preciso dar o próximo passo, e infelizmente a prefeitura de São Paulo não tem política habitacional. Aliás, nenhuma prefeitura tem. Hoje, todo mundo só roda o Minha Casa Minha Vida”, afirma.
Segundo a professora, o programa federal é inadequado para oferecer habitação à população de baixíssima renda que vive no centro de São Paulo. “É um programa cujo modelo é basicamente construção de casinha e predinho na periferia”, resume.
Leia os principais trechos da entrevista:
EXAME.com - Em linhas gerais, como funcionam essas medidas que a prefeitura de São Paulo coloca em prática agora?
Raquel Rolnik - Trata-se de um conjunto de sanções que passam a incidir sobre edifícios e terrenos vazios ou subutilizados na cidade. O primeiro passo nesse processo é a notificação do proprietário. A partir daí ele tem um prazo para dar um uso ao imóvel.
O IPTU progressivo é o segundo passo, ele vai aumentando ano a ano até chegar a 15% do valor do imóvel ao final de cinco anos. Se, ao final desse período, o proprietário insiste em continuar não cumprindo a função social de seu imóvel, finalmente, então, o local pode ser desapropriado pela prefeitura.
EXAME.com - Qual o objetivo disso?
Raquel Rolnik - O objetivo fundamental é fazer com que os imóveis cumpram a sua função social. Historicamente, o planejamento da cidade tem ficado basicamente no discurso. O poder público diz como as coisas precisam ser, mas depende totalmente da vontade do proprietário decidir quando ele vai fazer aquilo, se é que ele vai fazer.
Esses instrumentos vão no sentido de incentivar a aplicação do Plano Diretor, para que ele não seja apenas uma declaração de intenções e passe a se transformar numa realidade na cidade.
EXAME.com - Todo terreno vazio pode sofrer sanções?
Raquel Rolnik - Não. Por exemplo, se você está numa área de preservação ambiental, quanto menos você ocupar melhor. Mas se é uma área que o Plano Diretor define como área prioritária para repovoamento, então não pode deixar vazio. Isso depende diretamente das diretrizes do Plano Diretor.
EXAME.com - São Paulo demorou para colocar em prática esse mecanismo?
Raquel Rolnik - “Demorou” é bondade. Tudo isso já está definido na Constituição de 1988. Diadema aplicou já em 1993.
Em São Paulo, estamos tentando fazer desde então. Mas havia todo um bloqueio jurídico, diziam que era necessário ter uma lei federal regulamentando. Pois bem, a lei federal veio em 2001, que é o Estatuto da Cidade.
Então, digamos que em 2001 já estávamos prontos para aplicar. Mas as administrações municipais simplesmente não aplicaram, porque morrem de medo de enfrentar o poder dos proprietários privados.
Imagina como a gente já poderia ter avançado se já estivéssemos há 25 anos aplicando isso na nossa cidade.
EXAME.com - Como é isso em outros países?
Raquel Rolnik - Existem vários tipos de instrumentos, muitos deles para promover moradia bem localizada em áreas centrais. Na França, por exemplo, todo e qualquer empreendimento habitacional tem que produzir 20% de unidades para habitação de interesse social. Políticas desse tipo também existem na Áustria, na Holanda, no Canadá.
A lógica disso é de que temos uma dinâmica de mercado que estrutura a cidade, mas ela não pode ser a única dinâmica. Se ela for a única, o mercado vai produzir distorções.
EXAME.com - Por quê?
Raquel Rolnik - Para muitos proprietários privados, se o uso que ele faz do imóvel dele prejudica ou traz benefícios para a cidade pouco importa.
Os imóveis vazios têm um impacto puramente patrimonial e financeiro nas contabilidades dos proprietários. Só que, por acaso, aquilo também é um pedaço da cidade, e a cidade não é uma soma de indivíduos, ela tem uma dimensão coletiva que precisa ser garantida.
Então, se a cidade precisa urgentemente de moradia, ela tem que colocar um horizonte temporal para que esses imóveis sejam utilizados. Claramente o problema da habitação está pegando muito pesado aqui em são Paulo. Temos uma demanda habitacional enorme e um boom do mercado imobiliário.
EXAME.com - Quais outros impactos esses imóveis vazios trazem para a cidade?
Raquel Rolnik - Quem anda pelo centro de São Paulo vê o impacto urbanístico que um monte de prédios abandonados tem. Aquilo fica degradando o espaço. Você vai caminhando por uma cidade meio morta, em ruínas. E uma cidade em ruínas é uma cidade de péssima qualidade. Nós não podemos admitir isso.
EXAME.com - Mas e se o proprietário não tiver condições de recuperar o imóvel?
Raquel Rolnik - Não tem problema nenhum, ele pode vender para quem tem. Ou se associar com quem tem. Através desses mecanismos é possível inclusive estabelecer consórcios imobiliários, em que o proprietário depois fica com algumas unidades.
EXAME.com - Como fica o direito à propriedade?
Raquel Rolnik - Primeiro, que só depois de sete anos que o proprietário pode ter o imóvel desapropriado. E, segundo, que a propriedade privada tem responsabilidades também. É um atributo da propriedade privada a sua função social.
Se a gente for remeter às origens da propriedade privada, ao conceito weberiano, ela se coloca como um elemento que dá sustentação para a cidadania, para um espaço social entre iguais e livres, no qual os indivíduos têm obrigações e responsabilidades.
Eu diria que esse é um mecanismo civilizatório, estamos deixando de ser selvagens. O Brasil está ficando gente grande em várias dimensões das suas políticas, precisa ficar gente grande na política urbana também.
EXAME.com - Existem críticas de que essa é uma forma de o prefeito conseguir algum aumento no IPTU, já que não conseguiu no ano passado.
Raquel Rolnik - Essa é uma leitura absolutamente falaciosa e oportunista. Como eu já disse, já faz 25 anos que esta medida precisa ser feita. Não tem nada a ver com o Haddad ou com IPTU.
Nós não queremos ficar atravessando no meio de ruínas. Queremos uma cidade com muita gente morando, muita gente usando esses espaços, inclusive com objetivos comerciais. Então, o objetivo fundamental é urbanístico, não tem nada a ver com a questão arrecadatória.
EXAME.com - Qual a sua opinião sobre o aumento do IPTU em São Paulo?
Raquel Rolnik - A discussão do IPTU é importante, e São Paulo tem que enfrentar essa questão. Aconteceu um boom imobiliário, os imóveis sofreram um aumento muito grande, e hoje o IPTU e o valor venal estão muito defasados.
Mas é claro que isso não acontece em todos os lugares. É preciso fazer uma discussão bem delicada para ter um IPTU que reflita melhor o valor dos imóveis no mercado. É uma questão que tem vários lados.
EXAME.com - Quais outras cidades já aplicam essas medidas?
Raquel Rolnik - Posso te dizer que esse instrumento está presente em pelo menos 30% dos planos diretores do Brasil. Dos lugares que já tiveram uma experiência, eu sei de Diadema e Santo André.
EXAME.com - Tem ideia de quantos imóveis sem uso existem em São Paulo hoje?
Raquel Rolnik - Por incrível que pareça, ninguém sabe. Porque, até hoje, isso foi irrelevante para a administração municipal. Isso está sendo levantado agora por uma iniciativa da Câmara Municipal. Esse é um processo progressivo, que deve ser feito de forma permanente.
EXAME.com - Depois que esses imóveis estiverem disponíveis, qual o próximo passo?
Raquel Rolnik - Se quisermos que uma parte desses imóveis realmente se transforme em moradia, não basta só ter o local. Também tem que ter um programa habitacional na cidade capaz de apresentar alternativas, mobilizar atores públicos e privados, trabalhar com financiamentos, com subsídios e com formas de uso desses imóveis compatíveis com o lugar onde eles estão.
EXAME.com - O Minha Casa Minha Vida se encaixaria?
Raquel Rolnik - Nós estamos vivendo uma emergência habitacional em São Paulo. E, infelizmente, o único programa habitacional que nós temos no Brasil é um programa para construção de casas novas, que é o Minha Casa Minha Vida.
É um programa cujo modelo é basicamente construção de casinha e predinho na periferia. A forma como ele é estruturado leva a isso. É muito difícil trabalhar com esse programa para fazer reforma de edifício em área central, e é mais difícil ainda garantir habitação para baixa renda em área central.
Dos programas habitacionais no mundo que conseguiram apresentar uma oferta massiva para quem mais precisa, nenhum trabalha com propriedade individual na renda baixíssima, de 0 a 1 salário mínimo.
EXAME.com - Por que não funciona?
Raquel Rolnik - Evidentemente que o programa de propriedade é importante, serve para muita gente. Mas, para quem tem uma renda baixíssima, para quem está no trabalho informal, numa situação sazonal, não tem o menor sentido trabalhar com propriedade privada.
Aí as pessoas dizem: “O cara vai ganhar uma casa praticamente de graça, e depois vai vender”. Óbvio que vai vender. Se precisar de dinheiro para comer, ele vai vender! Então a propriedade privada individual não pode ser o modelo único.
EXAME.com - Quais poderiam ser as alternativas?
Raquel Rolnik - Nós não temos nenhum programa, por exemplo, de locação social, que é básico. O direito a moradia adequada não é o direito de ter casa. É o direito de ter acesso a uma moradia adequada mesmo que você não tenha renda para comprar uma.
É você ter, por exemplo, um aluguel que não vai te botar na rua só porque você não tem como pagar. É ter a mínima condição de qualidade e dignidade de moradia, apesar de ter uma renda baixa. Essa é a definição do direito à moradia, como um direito humano, não como um direito à propriedade.
Então precisa ter outras opções de tipos de posse. Dois exemplos: um é a locação social, e o outro é a propriedade cooperativa. São duas formas de proteção da segurança da posse de quem está ali, e ao mesmo tempo ficam menos expostas às pressões do mercado.
EXAME.com - Em resumo, as sanções aos proprietários são importantes, mas não suficientes.
Raquel Rolnik - Agora tem que dar o próximo passo. Infelizmente, a prefeitura de São Paulo, aliás, as prefeituras do Brasil, ninguém mais tem política habitacional. Todo mundo só “roda o Minha Casa Minha Vida”, eles até usam essa expressão. E nós precisamos de outras opções de políticas habitacionais.
Na minha opinião, a prefeitura de São Paulo, particularmente, tem todas as condições de montar um programa adequado para usar esse estoque de edifícios vazios para produzir habitação. Não só tem condições, como já fez isso.
Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e foi relatora da ONU para o direito à moradia