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JURÍDICO

Pandemia, cratera e elementos relacionais

Por Bruna Souza da Rocha - 18 de março de 2022 635 Visualizações
Pandemia, cratera e elementos relacionais

Há exatos dois anos, a restrição social decorrente da pandemia atingiu sobremaneira a demanda de diversos serviços públicos, como transporte urbano e infraestrutura de portos, aeroportos e rodovias. O abrupto desequilíbrio econômico-financeiro e a impossibilidade de se prever a exata volta à normalidade fez com que, poucos dias após a eclosão da pandemia, diversos entes e órgãos da Administração Pública externassem um firme posicionamento no sentido de que o risco do evento pandêmico integra a álea extraordinária dos contratos, devendo, salvo disposição em contrário, ser assumido pelo poder público mediante reequilíbrio contratual.

Assim o fez o município de São Paulo, por exemplo, quando editou a Lei 17.335, de 27 de março de 2020, autorizando a adoção de medidas excepcionais no bojo de contratos administrativos de serviços contínuos visando à redução dos impactos na demanda causados pela pandemia. Da mesma forma a AGU, no Parecer 261/2020/Conjur-Minfra/CGU/AGU, de 16 de abril de 2020, consignando que a pandemia pode ser classificada como evento de força maior ou caso fortuito, a justificar o reequilíbrio de contratos de concessão de infraestrutura de transportes.

Poucas controvérsias surgiram a respeito da natureza da pandemia para fins de alocação de risco contratual, sendo a resposta da Administração Pública, no geral, ágil e contundente, colaborando para afastar grandes polêmicas e morosos litígios que pudessem agravar ainda mais o caos vivido.

Mais recentemente, durante as obras de perfuração da Linha 6-Laranja do Metrô de São Paulo, uma cratera se abriu e atingiu parte da Marginal Tietê. As imagens do ocorrido mostram a cratera sendo tomada por esgoto vindo de uma coletora da Sabesp que se rompeu, localizada muito próximo às obras de perfuração do metrô.

Apenas um dia após o acidente, o governo do Estado de São Paulo afirmou à imprensa que a concessionária responsável pelas obras (Linha Uni/Acciona) assumiu a responsabilidade por todos os custos de reparo, recuperação física do espaço e medidas de melhoramento do tráfego na região. No dia seguinte — ou seja, dois dias após o incidente —, a cratera já estava preenchida com material rochoso e argamassa e a pista central da Marginal Tietê liberada.

Embora ainda se discuta os reais quadrantes de responsabilidade dos envolvidos, o que somente poderá será desvendado com a confirmação das causas do incidente, é de se notar o passo à frente dado pela concessionária com relação à responsabilidade sobre os custos de remediação e de mitigação dos prejuízos — ainda que tal posicionamento seja provisório —, contribuindo para uma célere resposta à sociedade e minorando os transtornos ao interesse público envolvido.

Dito isso, o que ambos os casos — pandemia e cratera — demonstram ter em comum, ao menos até o momento? A resposta, longe de ser presumível, não é recorrente no âmbito dos contratos administrativos: a adoção de elementos relacionais entre as partes contratantes.

Amplamente desenvolvida pelo jurista escocês Ian Macneil, a teoria dos contratos relacionais surge em contraposição às premissas do modelo neoclássico liberal de transações descontínuas.

De forma resumida, os contratos descontínuos priorizam a máxima satisfação dos interesses individuais das partes, tidos como naturalmente divergentes, servindo a transação unicamente ao alcance da específica finalidade particular almejada pelo indivíduo. A vinculação estrita à promessa monetizada, a antecipação do futuro mediante um planejamento exauriente, a resistência às mudanças, a brevidade das transações, os marcos temporais bem definidos, a não divisão e compartilhamento de ônus e benefícios, a inexistência de envolvimento pessoal e a ínfima comunicação entre as partes são características dos contratos descontínuos.

Já nos contratos relacionais, os interesses das partes não são considerados contrapostos, mas sim convergentes, uma vez que é de interesse comum a consecução do objeto e atingimento das finalidades contratuais. Relações complexas de longo prazo, planejamento de estruturas e processos que encarem imprevistos por meio de negociação e incentivo à consensualidade, aceitação da mutabilidade contratual, comunicação, relevância de fatores não-promissórios (como o papel social de um dos contratantes), divisão e compartilhamento de ônus e benefícios e observância das práticas e contexto social são atributos de tais transações [1].

Além disso, é nos contratos relacionais que a cooperação se desenvolve e assume um novo papel de dever central das partes, especialmente na prevenção e resolução de conflitos.

Ronaldo Porto Macedo Jr. ensina que "cooperar é associar-se com outro para benefício mútuo ou para divisão mútua dos ônus". Aduz o autor que enquanto no paradigma dogmático tradicional dos contratos descontínuos a cooperação encampa um mero papel acessório, nos contratos relacionais ela se converte de três maneiras: primeiro, assume um caráter central; depois, deixa de ser um princípio subsidiário na interpretação dos contratos, invocado somente para preencher lacunas, passando a ser um princípio básico de todas as transações relacionais, ainda que sua importância varie conforme as circunstâncias; por fim, o dever de solidariedade impõe a obrigação moral e legal de agir conforme determinados valores comunitários, e não apenas segundo uma lógica individualista de maximização de interesses econômicos [2].

É possível inferir que os contratos administrativos, notadamente os contratos de concessão e de parcerias público-privadas, constituem verdadeiros contratos relacionais, ainda que, como mencionado por Flávio Amaral Garcia, "a sua estruturação teórica não tenha sido organizada racionalmente para esse fim" [3]. Afinal, todos os atributos concernentes à espécie podem ser neles antevistos - mesmo a cooperação, que não é propriamente incipiente, mas considerada factualmente incerta no âmbito dos contratos administrativos [4].

Encarar a cooperação como dever central das partes, na exata acepção dos contratos relacionais, significa elevar os contratos administrativos a patamares de maior eficiência, visto que uma postura colaborativa das partes tende a diminuir custos de transação [5] ínsitos a longos litígios e intermináveis contendas judiciais, além de acelerar o atingimento das finalidades contratuais de interesse público e retorno econômico-financeiro contratualmente constituído.

A cooperação como elemento relacional, ademais, tende a promover maior segurança jurídica no ambiente do contrato, advinda do fato de que, face à mutabilidade contratual, as partes saberão como agir, munidas de boa-fé e cooperando reciprocamente, guiadas por processos preestabelecidos no contrato ou na regulação de incentivo à busca de soluções consensuais.

Os dois casos mencionados, por serem emblemáticos e representarem situações de arrojada iniciativa de ambas as partes na assunção de contingências durante a execução contratual, indicam que há caminhos de consensualidade no âmbito dos contratos administrativos nos quais a cooperação exerce grande potencial, e no qual todos (contratantes, reguladores e sociedade) podem ganhar. Basta a todos trilhar!

[1] Nas palavras de Ronaldo Porto Macedo Jr, "contratos relacionais (...) são contratos que se desenvolvem numa relação complexa, na qual elementos não-promissórios do contrato, relacionados ao seu contexto, são levados em consideração significativamente para a sua constituição”. O autor também considera que "todos os contratos são mais ou menos relacionais e jamais completamente não-relacionais ou descontínuos". (Contratos Relacionais e Direito do Consumidor, São Paulo: RT, Nota do Autor à 2ª edição).

[2] Ibidem, p. 140 e 153.

[3] "A Mutabilidade nos Contratos de Concessão no Brasil". Tese apresentada como requisito para obtenção do grau de Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, abr. 2020, p. 116. Disponível em http://hdl.handle.net/10316/90629,

[4] "(...) muito embora a concessão de serviços seja atividade empresarial autônoma, isto não significa dizer que concedente e concessionário estejam em polos opostos. A rigor, a contratualização do vínculo instala a obrigação de colaboração recíproca — não só no que respeita ao objeto próprio do contrato, mas também quanto a deveres laterais de conduta que precisam instruir a conduta das partes. Aqui, o 'credor' (o concedente) tem o dever estatutário de envidar os melhores esforços para que o 'devedor' (o concessionário) preste o serviço e execute as obras da forma mais adequada possível. E o mesmo se diga do concessionário quanto aos seus deveres frente ao concedente. Para as partes existe o dever ativo de condutas positivas, a fim de que ambas efetivamente colaborem reciprocamente na efetivação dos objetivos, primários e secundários, do projeto concessionário." (MOREIRA, Egon Bockmann. A concessão de serviço público: breves notas sobre a atividade empresarial concessionária. Rio de Janeiro: Revista de Direito da Procuradoria Geral, Edição Especial, 2012, p. 102).

[5] Os custos de transação consistem nos dispêndios relacionados à busca de informação, negociação, formalização dos contratos, monitoramento da execução contratual e adoção de medidas que obriguem o cumprimento do contrato (sendo os três primeiros custos ex ante e os dois últimos custos ex post).

PorBruna Souza da Rocha