O modelo de autorizações ferroviárias estabelecido pela Lei nº 14.273, de 23/12/2021, prevê a possibilidade de exploração privada de ferrovias em regime próximo ao de livre competição entre os agentes (que a lei chama de "regime privado"). O novo regime convive com o regime anterior — o das concessões (na dicção da lei, "regime público") —, podendo haver tensões e impactos de um modelo sobre o outro, conforme apontei em artigo específico, tratando dos prováveis impactos adversos das autorizações sobre o equilíbrio econômico-financeiro das concessões em vigor [1].
Embora o instituto da autorização como um instituto de direito administrativo geral seja, conforme aponto em obra específica [2], tradicionalmente descrito como sendo consubstanciado em um ato unilateral do poder público que, contando com a adesão do particular ou atendendo a um requerimento seu, retira um óbice jurídico para a realização de certas atividades por parte deste último, nada impede que o legislador, ou mesmo a administração pública, optem pela via contratual. Atribuir natureza contratual à autorização representa, do ponto de vista legislativo, o exercício legítimo do poder de tipificação contratual, e, do ponto de vista administrativo, o exercício, igualmente legítimo, da capacidade de recorrer à atipicidade contratual. O mesmo fenômeno, não custa lembrar, ocorreu há algumas décadas, no campo dos serviços públicos, com a figura da permissão: se, antes da promulgação da Constituição de 1988, a permissão era predominantemente qualificada como um ato administrativo unilateral, depois desse marco (ex vi do artigo 175 da Carta, que expressamente qualifica a permissão como um contrato) o instituto mudou inquestionavelmente de natureza. Essas transformações de institutos jurídicos representam um fenômeno frequente, que não pode deixar de ser reconhecido pela doutrina. No caso das ferrovias, uma possível explicação para essa transformação da autorização, de ato administrativo para contrato, se deve à previsão de convolação (a lei fala, de forma atécnica, em "adaptação") das concessões em autorizações (art. 64): como as concessões possuem natureza contratual, faria sentido manter esse aspecto essencial na sua "adaptação" em autorizações.
Até o presente momento, foram firmados 27 contratos de adesão de autorização [3], os quais, como o próprio nome indica, à exceção dos dados particulares de cada projeto concreto, possuem conteúdo idêntico. Analisando-se as suas cláusulas, a conclusão inevitável é que alguns aspectos precisam ser objeto de reflexão (e revisão) pelo próprio poder concedente, sob pena de virem a ser revistos pelo judiciário, quando os conflitos estiverem postos. A seguir comentaremos algumas dessas cláusulas.
a) Responsabilidade do poder concedente
A cláusula 2.8. estabelece que os "contratos para o transporte de cargas e/ou passageiros celebrados entre a AUTORIZATÁRIA e terceiros, reger-se-ão, exclusivamente, pelas normas de direito privado, sem participação, responsabilidade ou estabelecimento de qualquer relação jurídica com o PODER CONCEDENTE e com a ANTT" (grifos nossos). A interpretação literal desta cláusula indica que o que se pretende é quebrar o tripé concedente-delegatário-usuário dos serviços (tradicional não apenas no modelo de concessões, mas também em permissões e autorizações), de forma a retirar o poder concedente da equação. O efeito desse tipo de dispositivo seria excluir ou "imunizar" o poder concedente de litígios que, por exemplo, envolvam indenização a terceiros (usuários e não-usuários) por fatos/atos relacionados ao serviço.
Ocorre que isto não é possível, à luz do artigo 37, §6º, da Constituição, que estabelece a responsabilidade objetiva do Estado e das prestadoras de serviços públicos "pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". Como os serviços ferroviários continuam sendo serviços públicos, independentemente do regime de delegação, não se pode excluir a responsabilidade do poder concedente (no caso, a União) pelos danos causados a usuários (e mesmo não-usuários). Longe de isto configurar uma proteção indevida aos prestadores de serviços públicos, a responsabilidade solidária (ou subsidiária, conforme o caso) do poder concedente visa a proteger o público: se a prestadora, por qualquer razão, se tornar insolvente, deve estar sempre disponível ao indivíduo a opção de acionar também o Estado, que é titular dos serviços, pouco importando, reitere-se, o regime de delegação. A não ser assim, toda a universalidade de usuários ficaria desprotegida.
b) Reversão de bens sem indenização
A cláusula 10.4 prevê a reversão dos bens desapropriados para a implantação do empreendimento autorizado, em caso de não-execução pelo autorizatário, "sem direito à indenização pelas acessões e benfeitorias nem a qualquer outra indenização".
A primeira observação a ser feita quanto ao tópico é a de que a previsão da reversibilidade de bens nas autorizações ferroviárias contraria a Lei nº 14.273/2021. Com efeito, o artigo 22 da lei estabelece que os "bens constituintes da ferrovia autorizada não são reversíveis ao poder público quando a respectiva autorização for extinta, exceto na hipótese de cessão ou de arrendamento" de bens públicos. Como a lei não distingue entre extinção causada pelo advento do termo contratual e extinção causada pelo descumprimento de uma das partes (no caso, da autorizatária), nem tampouco distingue entre bens móveis e imóveis, principais ou acessórios, para fins de irreversibilidade, não deve o intérprete fazê-lo. É caso, portanto, de ilegalidade chapada dos contratos de adesão.
Entretanto, ainda que se desconsiderasse esse fato e se cogitasse da possibilidade de reversão dos bens da autorizatária, há uma série de razões que amparam a conclusão de que tais bens são indenizáveis.
Em primeiro lugar, a cláusula em questão, ao pretender atribuir um caráter sancionatório à reversão em caso de não-execução do contrato pela autorizatária, parece-nos que veicula uma má-compreensão do que seja o instituto da reversão. Reversão, como se sabe, não é confisco ou penalidade; é o instituto que busca manter em poder do Estado os bens necessários à prestação dos serviços, com vistas à sua continuidade. Nas concessões e permissões, a reversão somente não comporta indenização para os bens já amortizados pelo delegatário; de qualquer modo, mesmo isto só será reconhecido depois do processo administrativo próprio, em que, conforme determina a Lei nº 8.987/1995, a administração deverá proceder "aos levantamentos e avaliações necessários à determinação dos montantes da indenização que será devida à concessionária" (artigo 35, §4º), compreendendo a indenização as "parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados, que tenham sido realizados com o objetivo de garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido" (artigo 36). A presunção, na reversão, portanto, é a da plena indenizabilidade dos bens revertidos.
Segundo, porque a Constituição garante o direito de propriedade de forma amplíssima (artigo 5º, XXII, XXV, XXIX, XXX, LIV, entre outros) e, com exceções não aplicáveis aqui, veda o confisco (artigo 150, IV, e artigo 243, par. único). Como os bens empregados no empreendimento ferroviário autorizado, embora possam ser resultado de um processo de desapropriação (em que há a intervenção, pelo menos quanto à declaração de utilidade pública, da parte do poder concedente), são bens de propriedade da autorizatária (i.e., propriedade privada), não se pode simplesmente revertê-los sem a correspondente indenização.
Em terceiro lugar: como as autorizações de serviços ferroviários, por se assemelharem às atividades prestadas em liberdade de competição, não comportam (pelo menos na sua configuração tradicional) a ideia de equilíbrio econômico-financeiro (a cláusula 6.1, V, do contrato de adesão, estabelece que a autorizatária assume o "risco integral do empreendimento, sem direito a reequilíbrio econômico-financeiro", aplicando o mandamento do artigo 29, §6º, da Lei nº 14.273/2021, de que as "cláusulas do contrato não podem atribuir direitos a equilíbrio econômico-financeiro"), não se pode falar, juridicamente, em efeitos decorrentes da amortização de investimentos, pois, se não há direito ao equilíbrio econômico-financeiro da parte da autorizatária, também não o há em favor do poder concedente. Este argumento nos leva a duas conclusões necessárias: (1) não é possível sustentar que não haveria indenização à autorizatária, ainda que sob a justificativa de que os investimentos desta teriam sido “amortizados"; e (2) o único critério possível para a indenização dos bens revertidos nas autorizações ferroviárias será o do seu valor de mercado, critério aliás idêntico ao das desapropriações em geral.
c) Ampliação das hipóteses legais da declaração de inidoneidade
A cláusula 12.5 dos contratos de adesão prevê que a declaração de inidoneidade será cabível em três hipóteses: (1) "quando da prática de atos ilícitos visando (sic) frustrar a execução do objeto da autorização"; (2) "mediante apresentação de informações ou dados falsos"; e (3) "pela prática de atos com abuso de poder econômico ou infringindo as normas de defesa da concorrência, apuradas e julgadas na forma da legislação aplicável".
As duas matrizes normativas aplicáveis ao caso — a Lei nº 8.666/1993 e a Lei nº 14.133/2021 —atrelam a sanção de declaração de inidoneidade a um descumprimento contratual grave, havendo inclusive (no caso da sistemática da Lei nº 8.666/1993) a necessidade de aplicação de uma sanção prévia (a de suspensão do direito de licitar e contratar com administração pública) e à existência de um grave dano causado à administração. Embora a primeira das hipóteses descritas no parágrafo anterior possa ser assimilada a um descumprimento contratual grave, as duas restantes, não. Embora prestar informações falsas à administração e praticar atos contrários à concorrência ou com abuso de poder econômico sejam, em si, condutas nocivas e que merecem reprimenda, elas não podem dar causa à declaração de inidoneidade, por falta de previsão legal nesse sentido. Aliás, com relação a ambas se pode dizer que já existem sanções penais e administrativas específicas, inclusive perante os órgãos de defesa da concorrência [4]. A inovação dos contratos de adesão, além de ilegal, representaria, nessa linha, um desnecessário bis in idem.
d) Cláusula arbitral
A cláusula 16.1 do contrato de adesão institui a obrigatoriedade de submissão à arbitragem os conflitos resultantes da avença que não puderem ser resolvidos amigavelmente. Entretanto, a cláusula 16.2 exclui da arbitragem as disputas envolvendo (1) o exercício dos poderes de regulação e de fiscalização sobre a exploração do serviço de transporte ferroviário federal outorgado por autorização; (2) obrigações e penalidades pecuniárias já inscritas em divida ativa; (3) a decisão sobre a extinção da autorização; e (4) outros direitos indisponíveis ou não patrimoniais. A pergunta, diante de um rol tão amplo de exclusões, é a seguinte: o que sobra? Muito pouco, ou quase nada. Se a ideia era proporcionar segurança jurídica àqueles que se dispõem a realizar vultosos investimentos nos empreendimentos autorizados por meio da previsão da arbitragem para os contratos de adesão, era de se esperar que houvesse menos timidez na instituição da cláusula arbitral.
Em conclusão, os problemas acima apontados devem ser objeto de reflexão por parte da Administração Pública. Idealmente, deveriam ser aditados os contratos já firmados, para corrigi-los, e modificada a minuta padrão dos contratos de adesão, a fim de que os próximos contratos não contenham a mesma disciplina. O sucesso do modelo de autorizações passa pelo reconhecimento da responsabilidade da União perante os usuários de serviços ferroviários, pela clareza quanto à adoção ou não da reversão (e pelo reconhecimento da plena indenizabilidade dos bens eventualmente revertidos); pelo respeito à disciplina legal das sanções graves (como a de declaração de inidoneidade); e pela adoção plena (melhor dizendo, "de verdade") da arbitragem como o meio de solução de conflitos ligados às autorizações.
[1] Ver: https://www.conjur.com.br/2022-jan-05/amauri-saad-vetos-marco-legal-ferrovias.
[2] Ver o meu Autorização de serviço público (em coautoria com Sergio Ferraz) (São Paulo: Malheiros, 2018), capítulo 2.
[4] Exemplificativamente, ver os artigos 299 e 337-L, V, do Código Penal, o artigo 4º da Lei 8.137/1990, bem como os artigos 31 a 45 da Lei nº 12.529/2011.