“Ainda há tempo de evitar o pior das mudanças climáticas, mas esse tempo está se esgotando. É preciso agir já.” Se você acha que já ouviu essa mensagem antes — muitas vezes até, provavelmente —, sim, você está certo. Ela vem sendo repetida há anos, exaustivamente, pelos cientistas, e o problema é exatamente esse: o recado não muda porque a situação não muda (só piora) e o tempo disponível para agir está cada vez mais curto.
Esse é o principal recado, mais uma vez, do sexto Relatório de Análise (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), que teve seu terceiro e último fascículo publicado no início desta semana, 4 de abril. Os dois primeiros blocos (divulgados em agosto de 2021 e fevereiro de 2022) trataram das evidências científicas do aquecimento global, das suas consequências para o clima do planeta e para a espécie humana, e da necessidade urgente de preparação e adaptação a essas mudanças. Já este terceiro fascículo descreve o que é necessário fazer para impedir que a situação piore ainda mais daqui para frente — as chamadas “medidas de mitigação”. E atenção: o cenário não é nada bom.
O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, chegou a classificar o relatório como um “arquivo da vergonha”, elencando todas as “promessas vazias que nos colocam firmemente no caminho para um mundo inabitável”. “Estamos em um caminho rápido para o desastre climático”, sentenciou ele, em um duro discurso no dia 4.
Vamos aos números: as emissões globais de gases de efeito estufa (GEEs) na década de 2010 a 2019 foram as maiores de todos os tempos. Ou seja, a espécie humana nunca jogou tanto gás carbônico na atmosfera como agora, apesar de todos os alertas, desastres e acordos climáticos das últimas décadas. A média no período foi de 56 bilhões de toneladas lançados na atmosfera por ano; 9 bilhões a mais por ano do que na década anterior (2000-2009) e bem mais do que em qualquer outro período da história humana.
Cerca de dois terços dessas emissões, segundo o relatório, são de dióxido de carbono (CO2) gerado pela queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão) na indústria, principalmente para a geração de energia e transportes. As emissões de CO2 oriundas das chamadas “mudanças de uso do solo e florestas” são 11% do total, enquanto que as de metano (CH4) respondem por 18%, segundo o relatório. É nessas duas últimas categorias que o Brasil dá sua maior contribuição para o aquecimento do planeta, por meio do desmatamento (que libera quantidades enormes de CO2 para a atmosfera) e da agropecuária (que é uma grande fonte de CH4), como mostra o último relatório do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima.
Diante deste cenário (que já elevou a temperatura média do planeta em 1ºC), a janela de oportunidade que a humanidade tem para frear as mudanças climáticas está mais apertada do que nunca. Ainda não se fechou por completo, mas resta apenas uma fresta — falta saber se vamos passar por ela.
Para ter uma chance razoável (acima de 50%) de manter o aquecimento abaixo de 1,5ºC — que é o “limite de segurança” estipulado pela ciência e definido como meta pelo Acordo de Paris — as emissões globais de GEE precisam parar de subir até 2025, no máximo, e depois cair 43% até 2030, segundo o relatório. Para um limite de 2ºC, essa redução precisa ser de 25%.
De um jeito ou de outro, os cortes são grandes, e precisam começar imediatamente. Pelo andar da carruagem atual, se nada for feito além do que já está sendo feito agora, segundo o IPCC, o aumento de temperatura será de 3,2ºC em 2100; um cenário desastroso para o planeta. A previsão é que os eventos climáticos extremos se tornem cada vez mais frequentes à medida que a temperatura aumenta, potencializando o risco de falta de alimentos, falta de energia, escassez hídrica, extinção de espécies, incêndios, inundações, ondas de calor, enchentes e tempestades, como as que arrasaram a cidade de Petrópolis (RJ) no início deste ano. Entre outras ameaças. (No gráfico ao lado, a linha vermelha representa para onde estamos indo; as linhas verde e azul mostram para onde deveríamos ir para cumprir o Acordo de Paris.)
“Mais do que qualquer outro relatório lançado (até agora), este aponta a necessidade da urgência de redução de emissões”, disse o pesquisador Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP, em um webinário sobre o tema, organizado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “O relatório fala que nós precisamos agir já”, completou ele, ressaltando que as mudanças climáticas não são mais uma preocupação do futuro, mas “uma questão do presente”.
Paulo Artaxo - Foto: Wikimedia
Reduzir as emissões rapidamente é absolutamente necessário, mas não suficiente, pois os gases do efeito estufa, ainda que em menor quantidade, continuarão se acumulando na atmosfera por longos períodos. Para frear de vez o aquecimento do planeta, segundo o IPCC, o mundo precisa se tornar “carbono neutro” por volta de 2050 (para estabilizar o aquecimento em 1,5ºC) ou 2070 (para o limite de 2ºC). Isso significa que todo o carbono lançado por atividades humanas na atmosfera precisa ser reabsorvido de alguma forma, seja por vias naturais ou tecnológicas. Para cada molécula de carbono que sobe, uma precisa descer.
“Para isso vamos ter que construir uma nova sociedade, muito diferente da que temos hoje; muito mais sustentável e com muito mais igualdade econômica e social”, disse Artaxo — um dos 21 cientistas brasileiros que participaram diretamente da confecção do relatório (AR6 completo), produzido por um exército científico de quase 800 autores e revisores internacionais, ao longo de sete anos, com base em dezenas de milhares de estudos publicados sobre o tema na literatura científica.
“É agora ou nunca, se quisermos limitar o aquecimento global a 1,5°C”, disse Jim Skea, especialista em clima e tecnologia do Imperial College London, que foi um dos coordenadores do Grupo de Trabalho 3 do IPCC (responsável por este último fascículo do relatório). “Sem reduções imediatas e profundas de emissões em todos os setores, será impossível.”
Ativistas levantam uma turbina eólica na África do Sul - Foto: Shayne Robinson / Greenpeace
Soluções limpas, boas e baratas
A boa notícia, em meio a esse cenário desalentador, é que “já temos todas as soluções tecnológicas que precisam ser implementadas” para dar essa guinada, “em todos os setores”, pontua Artaxo. E a custo relativamente baixo: segundo o IPCC, a adoção ampla de medidas com custo abaixo de US$ 100 por tonelada de gás carbônico já seria suficiente para reduzir pela metade as emissões globais de GEE até 2030, comparado a 2019. As opções estão aí, só falta vontade para implementá-las.
Um dos infográficos mais interessantes do novo relatório (SPM.7, disponível aqui) mostra a relação custo-benefício das várias estratégias atualmente disponíveis para mitigar o aquecimento global. A opção que se destaca como a mais barata e eficiente para reduzir emissões no curto prazo é a substituição de energia fóssil por energia solar e eólica — que, além de limpas e renováveis, tiveram seu custo de produção significativamente reduzido nos últimos dez anos. Em seguida aparecem estratégias ligadas ao setor de agricultura e florestas: redução do desmatamento, sequestro de carbono pela agricultura, reflorestamento e restauração florestal — também com alto potencial de mitigação de emissões, porém a custo maior do que o das energias renováveis.
Fronteira de área agrícola com vegetação nativa do Cerrado, na região conhecida como Matopiba - Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace
Algumas intervenções chegam a ter custo negativo, no sentido de que permitem reduzir gastos ao mesmo tempo que reduzem emissões e melhoram a qualidade de vida das pessoas. Por exemplo: a redução de demanda e aumento da eficiência energética nos setores de transporte e construção, com a adoção de carros e prédios mais econômicos e menos poluentes.
“Reduzir as emissões de gases do efeito estufa em todo o setor de energia requer grandes transições, incluindo uma redução substancial no uso geral de combustíveis fósseis, a implantação de fontes de energia de baixa emissão, a mudança para transportadores alternativos de energia e eficiência e conservação de energia”, diz o Sumário para Tomadores de Decisão, um resumão simplificado de todo o conteúdo científico do relatório, feito para subsidiar as discussões políticas e diplomáticas sobre o tema.
O desafio é enorme, mas não inatingível. Segundo o relatório, com uma combinação de boas políticas, boas tecnologias e bons comportamentos (pautados pela sustentabilidade) é possível reduzir as emissões globais de GEE em 40% a 70% até 2050, sem precisar inventar nenhuma roda. O que já seria suficiente, segundo os cientistas, para segurar o aquecimento global abaixo de 2ºC, pelo menos.
O custo econômico dessa mudança seria alto, claro, mas com uma relação de custo-benefício excelente. O impacto no PIB mundial seria de apenas alguns pontos porcentuais até 2050, segundo o relatório do IPCC. Ou seja, a economia mundial continuaria crescendo, apenas cresceria um pouco menos, com a vantagem nada desprezível de evitar o caos climático no planeta. “O custo da mitigação é alto, mas o custo de não reduzir emissões é pelo menos três vezes mais alto”, pontuou Artaxo. “É um preço muito grande que a nossa sociedade vai ter que pagar, e portanto temos que evitar e minimizar os danos o máximo possível.”
“É hora de parar de queimar nosso planeta e começar a investir na abundante energia renovável ao nosso redor”, disse Guterres o secretário-geral da ONU, em seu discurso do dia 4. “Uma mudança para as energias renováveis consertará nossa matriz mundial de energia quebrada e oferecerá esperança a milhões de pessoas que sofrem impactos climáticos hoje.”
Navio plataforma da Petrobras - Foto: André Ribeiro / Agência Petrobras
Captura de carbono
Feita essa redução emergencial de emissões, a conquista da neutralidade de carbono, necessária para estabilizar a temperatura do planeta a longo prazo, vai exigir um esforço adicional de captura, estocagem e até remoção de gás carbônico da atmosfera — um conjunto de ações descrito pela siglas em inglês CCS (de carbon capture and storage) e CDR (de carbon dioxide removal).
“O novo relatório nos alerta para a necessidade de reduzirmos drasticamente as emissões num prazo muito curto e, depois, ainda implementarmos processos de captura do carbono já liberado anteriormente. Neste cenário, tanto tecnologias para captura de CO2 concentrado na fonte quanto disperso na atmosfera terão papel importante, algumas em momentos mais preponderantes que outras”, diz o engenheiro Gustavo Assi, professor da Escola Politécnica da USP e diretor de inovação e difusão de conhecimento do Centro de Pesquisa para Inovação em Gases do Efeito Estufa (RCGI).
Gustavo Assi - Foto: RCGI
Inaugurado em 2016 na Poli, com financiamento da Fapesp e da empresa Shell, o RCGI investe fortemente no desenvolvimento de tecnologias de CCS e CDR — além de CCU, que contempla também a utilização do carbono capturado como matéria-prima para produção de energia e outros materiais.
“O contexto do Brasil é muito interessante”, avalia Assi. “Repare que o novo relatório atribuiu um papel importantíssimo para a mitigação das emissões através de reflorestamento, agricultura, biocombustíveis, energia eólica e energia solar. Estas soluções aparecem com a melhor relação custo-benefício para implementação urgente, e sabemos que o Brasil tem muito potencial para contribuir nestas áreas.”
O que não significa, porém, que o Brasil deva simplesmente abandonar sua indústria de óleo e gás do dia para a noite, diz o professor. “Ao mesmo tempo que novas soluções precisam aparecer no cenário para redução de emissões, necessitaremos de uma drástica descarbonização dos setores alimentados por combustíveis fósseis”, afirma Assi. “A exploração de hidrocarbonetos ainda é uma necessidade para o desenvolvimento dos países, mas a transição da matriz energética deve ser mais que um discurso bonito. Como solucionar estas duas demandas que parecem conflitantes? A resposta está na transformação da indústria de óleo e gás, na sua integração com novas fontes de energia, na sua integração com a nova matriz energética do hidrogênio e na busca por uma indústria de hidrocarbonetos neutra em emissões. Este movimento, que parece utópico — extrair óleo e gás sem emitir carbono — é possível através de uma revolução tecnológica no setor.”
Pedalada climática
Na contramão de todos esses alertas da ciência, o governo brasileiro apresentou nesta quinta-feira (7 de abril) a nova versão da sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) — o conjunto de ações que o país se compromete a realizar, de forma voluntária, em contribuição ao esforço internacional de enfrentamento da mudanças climáticas globais, norteado pelo Acordo de Paris, da Organização das Nações Unidas (ONU).
Fonte: Observatório do Clima / Reprodução
A nova NDC traz uma atualização dos compromissos assumidos pelo Brasil em 2015, na gestão da presidente Dilma Rousseff, que previam uma redução de 37% das emissões nacionais de GEEs até 2025 e de 43%, possivelmente, até 2030, em relação ao que o País emitia em 2005. Em 2020, já na gestão do presidente Jair Bolsonaro, o Brasil enviou à ONU uma atualização dessa NDC, que basicamente mantinha as mesmas metas de redução, porém utilizando uma nova base de cálculo (a Terceira Comunicação Nacional, de 2016), que revisava para cima as emissões do País em 2005 e, consequentemente, reduzia o tamanho das reduções que precisavam ser feitas proporcionalmente até 2025 e 2030. Uma manobra contábil de carbono que ficou conhecida na comunidade científica e ambiental como “pedalada climática”.
A nova NDC, apresentada agora, eleva a meta de corte de emissões de 43% para 50% até 2030, mas segue permitindo que o País emita mais carbono até esta data do que estava previsto na NDC original, de 2015, segundo uma análise divulgada pelo Observatório do Clima. Em suma: o novo compromisso reduz o tamanho da pedalada, mas continua pedalando. “É como ter uma dívida no cartão de crédito e pagar só uma parte da fatura. Continua sendo um retrocesso, num momento em que as Nações Unidas fazem um chamado para os países aumentarem suas ambições. O Brasil não responde ao chamado e ainda continua retrocedendo”, afirma Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, em nota da organização.