O novo Marco Legal do Transporte Ferroviário foi sancionado no fim do ano passado e promete movimentar o setor no país. A Lei 14.273/21 busca facilitar investimentos privados na construção de ferrovias, no aproveitamento de trechos ociosos e na prestação do serviço de transporte ferroviário. O texto permitirá a construção de ferrovias por autorização, como ocorre na exploração de infraestrutura em setores como telecomunicações, energia elétrica e portuário. Também poderá ser autorizada a exploração de trechos não implantados, ociosos ou em processo de devolução ou desativação. E, além disso, poderá inspirar outros setores, como o rodoviário.
A diferença de tratamento é flagrante. Enquanto o transporte ferroviário recebe estímulo e conta agora com um marco regulatório que abre o mercado para novos operadores, o transporte rodoviário sofre com leis que inibem, quando não simplesmente inviabilizam, a entrada de novos investimentos.
Para o presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer), Vicente Abate, a expectativa para o futuro é a melhor possível. Do outro lado, a Associação Brasileira dos Fretadores Colaborativos (Abrafrec) aponta que a inovação e a abertura de mercado são alvos constantes das empresas que dominam o setor há décadas, e a regulação não acompanhou a inovação trazida pela tecnologia.
Incentivos às ferrovias
“Estávamos precisando de incentivos para que pudéssemos crescer de forma geral. O marco das ferrovias pode nos levar a um novo patamar”, diz Vicente Abate, da Abifer.
“Há muitas oportunidades de investimento no Brasil nos modais de transporte público, mas, para tanto, é fundamental que haja a implementação de mecanismos legais e operacionais, que demonstrem a atratividade desses ativos aos investidores”, avalia Alberto Sogayar, sócio da MAMG Advogados, que atua em projetos envolvendo engenharia e construção.
Uma concepção errada que se tem é que há no Brasil muitas rodovias e em bom estado de conservação. Não é o caso.
Para se ter ideia do potencial rodoviário, um levantamento da Confederação Nacional do Transporte (CNT) avaliou 109.103 quilômetros de estradas pavimentadas federais e estaduais e constatou que o estado geral de 61,8% da malha rodoviária brasileira é classificado como regular, ruim ou péssimo.
“Se tem a falsa ideia de que o Brasil tem muitas rodovias. O que de fato houve é um desinteresse histórico de investimento nos setores ferroviário e aquaviário, mas isso não quer dizer que haja muitas rodovias no Brasil”, diz Sogayar.
Segundo o estudo da CNT, os pavimentos deficientes implicam mais gastos com despesas de manutenção do veículo. Sete em cada dez das rodovias sob administração pública mostraram irregularidades, o que acarreta um acréscimo estimado de 35,2% nos custos operacionais.
A CNT mapeou também o volume de investimentos no setor. Em 2016, foram investidos R$ 10,8 bilhões na infraestrutura das rodovias públicas federais. Em 2019 esse montante caiu para R$ 7,56 bilhões e, em 2021, para R$ 5,8 bilhões.
Mas Sogayar lembra que mudar essa realidade por meio de investimento privado exige segurança jurídica e Judiciário eficiente e célere que garantam a participação desses novos atores no mercado brasileiro.
O advogado não tem dúvida de que ainda há espaço para a implantação de inúmeras melhorias no setor rodoviário, mas lembra que é fundamental que haja políticas públicas que fomentem linhas de crédito que sejam atrativas e que se encaixem nos estudos de viabilidade daquele negócio.
O que mudou com a aprovação do Marco das Ferrovias
Desde a aprovação da matéria, seis grupos empresariais já receberam autorização do governo federal para tirar do papel projetos de construção e operação de nove ferrovias no país. Juntas, as estradas de ferro autorizadas têm potencial de agregar mais de 3,5 mil quilômetros de novos trilhos à rede ferroviária existente no país e mobilizar R$ 50,36 bilhões em investimentos no modal. Para se ter uma ideia do impacto, o orçamento público do Ministério da Infraestrutura no ano passado foi de apenas R$ 7 bilhões.
Ao se responsabilizar pela construção e operação de uma ferrovia, o investidor privado também assume altos riscos. Abate lembra alguns deles: “Temos a questão do licenciamento ambiental, engenharia…”, diz. É o preço do avanço. “Mas o Ministério da Infraestrutura já se colocou à disposição para dar todo o suporte técnico”, completa.
Hoje, 20% do transporte de carga no país é feito pela matriz ferroviária; até 2035, a expectativa é que esse valor corresponda a 40%. Quanto aos postos de trabalho, o setor prevê um salto para 225 mil empregados até 2035. Hoje são 16 mil trabalhadores no setor ferroviário. Há três anos, esse número era um pouco mais expressivo: 20 mil. Confirmada a expectativa de contratação, seria um incremento para lá de expressivo.
Em termos de transporte de passageiros, a participação é limitada e não necessariamente contemplada pelo marco das ferrovias. Há, entretanto, um documento em elaboração no Ministério da Infraestrutura para ampliar o uso dos trilhos neste sentido. A pasta está recebendo contribuições para só então apresentar relatório sobre o tema.
Em nota, a Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos) informou que apoia o Governo Federal na elaboração do documento.
“A Política Nacional tem o objetivo de desenvolver o sistema ferroviário de passageiros, proporcionando uma alternativa de transporte à população brasileira e propondo diretrizes para formulação de um modelo de negócio atrativo ao mercado, que potencialize os benefícios sociais e ambientais característicos do modo ferroviário, incentivando uma melhor utilização da malha ferroviária federal existente para o transporte ferroviário de passageiros”.
Regulação estatal x velocidade das inovações
Em 2017, surgiu no Brasil a promessa de oferecer viagens de ônibus de forma mais rápida e barata, em comparação ao valor cobrado pelas empresas de viação tradicionais.
Segundo a Associação Brasileira dos Fretadores Colaborativos, o modelo de fretamento, quando começou, se baseava no chamado “circuito fechado”: um grupo de pessoas contratava um ônibus para levá-las a determinado destino e trazê-las de volta para a cidade de origem.
Acontece que, com a evolução da tecnologia, surgiu o conceito de fretamento colaborativo. Por esse modelo, pessoas que não se conhecem podem “contratar” coletivamente um ônibus, com algumas diferenças em relação ao modelo antigo: a volta não precisa ser com as mesmas pessoas, o ônibus não tem de ser o mesmo e a reserva permite ao passageiro ser parte do grupo de viagem (não há assentos reservado para ele).
Porém, esse modelo de transporte passou a ser amplamente contestado por outras empresas do setor, o que levou a diversas disputas judiciais nos últimos anos. É o preço de desbravar um mercado novo.
Para Sogayar, é “extremamente interessante” haver regulamentação na utilização dessa modalidade de transporte, sempre no intuito de bem proteger todos os seus usuários.