Após décadas de descaso em que uma ampla malha de transporte regional sobre trilhos foi perdida, o Brasil acordou para a necessidade de possuir ferrovias modernas, com trens capazes de circular em velocidade elevada e assim oferecer um serviço eficiente e sobretudo mais limpo.
Projetos de trens regionais e de alta velocidade surgiram nos últimos anos, porém, até hoje teimam em não virar realidade. Apesar das lições aprendidas, o país está descobrindo de forma amarga que a falta de planejamento no passado está cobrando um alto preço atualmente.
Por conta do abandono de centenas de quilômetros de vias, boa parte do trajeto não é compatível com o desempenho de trens de média e alta velocidade, exigindo vultosos investimentos para corrigir essas deficiências, quando não é necessária a criação de novos trechos.
Dois projetos atualmente em destaque são afetados diretamente por esse panorama nocivo ao transporte ferroviário regional, o Trem Intercidades do governo paulista, e o Trem de Alta Velocidade, surgido nos primeiros governos petistas.
Ambos foram gestados por muitos anos, consumindo tempo e dinheiro sem que as previsões otimistas tenham sido cumpridas.
Parte dos problemas incluiu erros de avaliação e estimativas muito otimistas, mas também a incapacidade de superar desafios como a burocracia, a judicialização, os altos custos e a falta de previsão dos rumos da economia brasileira.
Por conta disso, tanto o TIC Eixo Norte, entre São Paulo e Campinas, quanto o projeto do Trem de Alta Velocidade recentemente aprovado pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) estão sendo concebidos aquém do potencial que eles representam.
Segregação de vias
O Trem Intercidades está sendo cogitado pelo governo do estado de São Paulo há mais de uma década como uma solução para aliviar o trânsito nas rodovias que chegam à capital. O primeiro trecho, que atenderá Campinas e Jundiaí, deveria ter sido licitado na gestão de Geraldo Alckmin (PSB), passou para o governo de João Doria (sem partido) e acabou herdado pelo atual governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Agora, a expectativa é que finalmente o edital seja publicado até junho, com o leilão ocorrendo em novembro se não houver mais mudanças. O que será concedido, no entanto, é um serviço capaz de ligar a estação Barra Funda ao centro de Campinas em pouco mais de uma hora, praticamente o mesmo tempo que um automóvel leva para cobrir um percurso semelhante.
Trata-se de um percurso de 101 km, cuja viagem será cumprida a uma velocidade média de 95 km/h, feito por vias segregadas no atual trajeto usado pelas concessionárias de carga e a CPTM e que foi construído no final do século 19.
Poderia ser mais veloz? Sim, caso o percurso fosse construído para esse tipo de operação, com raios de curva mais abertos, por exemplo. O problema é que para abrir uma nova ferrovia, o custo do Trem Intercidades seria extremamente elevado. Além disso, esbarraria-se no dilema de desapropriar mais áreas e de buscar o licenciamento ambiental para abrir túneis e vias elevadas, assuntos que no Brasil se tornam grandes novelas com final desconhecido.
Por conta disso, talvez o TIC Eixo Norte tenha que se contentar em esvaziar ônibus apenas, não sendo suficientemente atraente para motivar proprietários de automóveis a abandonar o transporte individual. E aí temos outro dilema, o preço da passagem.
Na modelagem do Trem Intercidades, o serviço expresso deverá ter um teto máximo a ser cobrado, cabendo ao concessionário definir as tarifas abaixo dele. Resta saber se a conta irá bater.
Estações longe do centro
O Trem de Alta Velocidade entre o Rio de Janeiro e São Paulo recentemente autorizado pela ANTT se encontra em um estágio bastante preliminar, apenas com um estudo do traçado e de alguns conceitos técnicos, pelo que se pode entender do pouco material disponibilizado.
A empresa que obteve a aprovação do governo federal para seguir com o projeto buscará agora parceiros de grande envergadura para estruturá-lo, como operadoras de trens de alta velocidade, construtoras e, sobretudo, entidades financeiras capazes de bancar um empreendimento tão caro.
Mas o novo TAV esbarra numa concepção inicial que causou espanto no setor: estações em Pirituba e Santa Cruz, regiões distantes dos centros das duas capitais. A opção, feita para evitar custos e burocracia, tornará o trem de alta velocidade dependente de outros sistemas como a Linha 6-Laranja, a ser inaugurada em 2025 e operada pela Linha Uni em São Paulo, e os trens metropolitanos operados pela SuperVia no Rio.
Ainda que uma parceria seja fechada com as respectivas concessionárias, parece contraditório levar pouco mais de uma hora para viajar entre as duas metrópoles e então ser necessário perder um grande tempo tentando chegar às regiões centrais.
Novamente, o temor do alto custo de implantar vias dentro da malha urbana e as questões polêmicas sobre desapropriações e licenças ambientais acabam piorando um projeto que poderia ser bastante vantajoso para a sociedade.
O país já errou demais com as ferrovias ao esquecê-las por décadas. Agora não pode cair na tentação de cometer outro engano ao não dimensionar os benefícios necessários para que as novas ferrovias possam ser eficientes no futuro.