O Canal do Panamá passa por uma reforma e tanto. A maior obra de engenharia realizada pelo homem até 1914, ano em que as obras tiveram início, está ganhando uma faixa de tráfego nova ao lado, adequada aos supercargueiros hoje dominantes no comércio internacional. Até 2015, se não houver mais atrasos, a expansão vai transformar a travessia entre os oceanos Atlântico e Pacífico e, com isso, o comércio mundial.
Proposto em 2006 pelo então presidente Martín Torrijos, que defendia a obra para tornar o Panamá um “país de Primeiro Mundo”, e iniciado no ano seguinte, o projeto era uma exigência natural num setor que evoluiu muito em cem anos. O atual Canal do Panamá recebe navios com até 295 metros de comprimento, 32 metros de largura e 12 metros de calado (o espaço ocupado pela embarcação dentro d’água), os chamados Panamax. A partir dos anos 1990, porém, surgiram navios muito maiores, capazes de levar mais carga na mesma viagem, e as dimensões do canal se tornaram um empecilho para eles.
A presença cada vez maior das embarcações Post-Panamax no comércio internacional expôs a obsolescência da passagem panamenha. Em 2011, 37% da frota mundial de cargueiros não podia trafegar ali. Um problema e tanto para um país que obtém com os pedágios US$ 1,8 bilhão por ano, cerca de 26% de seu Produto Interno Bruto (PIB). “O canal é o nosso petróleo”, afirmou Torrijos ao propor a expansão.
Um sinal da gravidade do atraso foi dado quando o dinamarquês Soeren Skou, presidente da Maersk, a maior transportadora de contêineres do mundo, anunciou em março que, em abril, sua empresa iria trocar o Canal do Panamá pelo de Suez para levar cargas da Ásia à costa leste dos EUA. “A economia é muito maior via Canal de Suez simplesmente porque você usa a metade do número de navios”, disse.
Enorme navio de passageiros espera sua vez para entrar no canal
Engarrafamentos reduzidos
Orçada em US$ 5,25 bilhões, a expansão do canal permitirá a passagem de navios com até 366 metros de comprimento, 49 metros de largura e 15,2 metros de calado, o que cobre 95% da atual frota de cargueiros do mundo. Enquanto os Panamax levam no máximo 4.400 TEU (sigla para “Twenty Foot Equivalent Unit”, tamanho padrão dos contêineres da navegação comercial), os Post-Panamax podem transportar até 14.000 TEU.
“A ampliação do canal permitirá duplicar o tráfego atual e triplicar o tamanho dos navios que o cruzam”, ressalta o engenheiro espanhol Bernardo González, diretor geral do projeto. “Atualmente, há momentos em que se produzem engarrafamentos com mais de 100 navios esperando para cruzar.”
As obras envolvem quatro eixos principais. Em primeiro lugar, estão sendo feitas escavações do leito marinho nas entradas do Atlântico e do Pacífico e ao longo do trajeto destinado aos Post-Panamax. Um canal de 6,1 quilômetros está sendo aberto para unir as comportas do Pacífico ao Passo Culebra (vale escavado pelo homem, através de uma serra). O Lago Gatún, criado entre 1907 e 1913 para facilitar a passagem dos navios, hoje abastece cerca de 50% da população panamenha com água potável. As obras estão elevando o nível operacional máximo do lago de 26,7 metros para 27,1 metros, o que garante o trânsito dos Post-Panamax sem prejudicar o fornecimento de água.
A estrela da expansão é o chamado Terceiro Jogo de Eclusas, responsável por 61% dos gastos do projeto. Conduzida por um consórcio de empresas da Espanha, Itália, Bélgica e do Panamá, a obra implica a instalação de 16 gigantescas comportas, oito das quais no lado atlântico e o restante no pacífico. Entre as quatro duplas de eclusas de cada lado há três câmaras consecutivas, que permitem ao navio subir do oceano até o Lago Gatún, ponto mais alto da travessia (26 metros acima do nível do mar), e dali descer para o outro lado.
O sistema contém inovações que tornam o processo mais fácil, barato e favorável ao meio ambiente. Produzidas na Itália, as novas comportas, com 30 metros de altura, movem-se sobre rodas, em vez de deslizar, e a redução de tempo obtida facilita os serviços de operação e manutenção, baixando os custos. Bacias de reúso empregam 7% a menos de água do que o sistema anterior e reaproveitam 60% da água exigida em cada trânsito.
Mapa do Panama´ com localizac¸a~o do Canal
Separação biológica
No canal atual, a água doce do trajeto impede naturalmente que formas de vida transitem de um oceano para o outro. Charles Andrews, sócio da empresa de consultoria Ergo, observa que, com a ampliação, “água doce e salgada terão de correr através do canal, e isso terá um impacto direto no Lago Gatún. Há preocupações sobre a capacidade de controlar a quantidade de água do mar que flui através do lago”.
No entanto, estudos da Associação Nacional da Conservação da Natureza (Ancon), uma das principais organizações ambientalistas panamenhas, concluíram que a obra causará uma salinização insignificante no Lago Gatún, garantindo a separação biológica entre o Atlântico e o Pacífico e a biodiversidade e a qualidade da água potável.
Outras preocupações ambientais incluem as florestas, o patrimônio arqueológico e as áreas agrícolas, industriais, turísticas e portuárias dos trechos afetados pela obra. A Autoridad del Canal de Panamá (ACP), agência governamental que opera e administra o canal, promete que o projeto vai causar transtornos mínimos a comunidades do entorno, parques nacionais e reservas florestais, e não afetará a qualidade do ar e da água. A capacidade dos lagos Gatún e Alajuela (que serve de reservatório para o primeiro) será maximizada e aumentará a eficiência no consumo de água, evitando a necessidade de novos reservatórios e o deslocamento de comunidades.
Os críticos do projeto não veem o quadro de forma tão rósea. Para eles, o ecossistema da região é complexo e, com isso, vários aspectos devem ser avaliados, como as diferenças de chuvas na região causadas por fenômenos como o El Niño, uma vez que o sistema do canal precisa de precipitações suficientes para se manter operacional e abastecer a população. A cada ano, há uma chance em 15 de que o nível da água caia a ponto de limitar as operações no canal. De todo modo, a ACP garante que qualquer dano constatado pode ser mitigado com a ajuda da tecnologia moderna. “A cultura do pessoal que controla o canal é de que quaisquer obstáculos à expansão podem ser removidos”, lamenta Eric Jones, editor do jornal de língua inglesa Panama News.
Eficiência ampliada
A expansão do canal e o aumento do tráfego vão possibilitar “uma tremenda melhora na cadeia de fornecimento global”, afirma Zach Cheney, diretor de operações da empresa de consultoria Jones Lang LaSalle (JLL). Boa parte das cargas que hoje chegam à costa oeste dos EUA e seguem por trem e caminhão para o leste deverá atravessar o novo conjunto de eclusas. As exportações agrícolas americanas para a Ásia também poderão ser despachadas via costa leste e Golfo do México. De olho nisso, portos como Miami, Nova York, Baltimore e Norfolk estão em obras para receber supercargueiros em 2015.
Países do Caribe também vão tentar aproveitar essas transformações. As Bahamas, a República Dominicana e a Jamaica já planejam portos para os maiores Post-Panamax. Por seu lado, o Panamá espera que a obra ajude a firmá-lo como um centro regional de comércio e finanças, tal como Cingapura ou Dubai.
Mesmo que o renovado Canal do Panamá não tenha todo o impacto previsto pelos mais otimistas, considera-se que haverá ganhos de eficiência significativos, com reflexos positivos no consumo de combustíveis fósseis e na poluição atmosférica. Se tudo correr bem até lá, a partir de 2016 saberemos quais serão as reais dimensões desses benefícios, para o Panamá e o mundo.
Abertura e fechamento de comportas do canal
Um país para o canal
A primeira vez em que se pensou em um canal através do istmo do Panamá foi em 1534, quando o rei espanhol Carlos V buscava meios de encurtar a viagem entre seu país e o Peru. A proposta voltou à cena no século 19, com a corrida do ouro na Califórnia. Em 1855, William Kennish, engenheiro inglês a serviço dos Estados Unidos, preparou um estudo sobre a importância e a viabilidade do projeto. Vinte e dois anos depois, os engenheiros franceses Armand Reclus e Lucien Napoléon Bonaparte Wyse criaram um plano para seu país fazer o canal.
Com apoio financeiro de Paris, um grupo francês iniciou em 1881 as obras na região, então província da Colômbia. O projeto, de Ferdinand de Lesseps (que fizera o Canal de Suez), era de um canal no nível do mar. O terreno difícil, a floresta tropical e moléstias como malária e febre amarela levaram à falência a empresa criada para a construção. Cerca de 22 mil operários morreram por acidentes e doenças.
Adquirido por outra empresa francesa, o negócio foi vendido ao governo dos EUA em 1903, sem a aprovação do Senado colombiano. Os americanos apoiaram então uma revolta de panamenhos separatistas e reconheceram rapidamente o novo país. Em troca, receberam a garantia de construir e administrar “indefinidamente” o canal.
Os americanos criaram o sistema de eclusas para vencer o relevo e concluíram a obra em 1914, ao custo atualizado de cerca de US$ 8,6 bilhões e 5.600 mortes. O canal é considerado até hoje o maior projeto de engenharia dos EUA.
Após a Segunda Guerra Mundial, os panamenhos começaram a questionar o domínio americano sobre a Zona do Canal. As discussões levaram a um grave incidente em 1964, no qual 4 soldados dos EUA e mais de 20 panamenhos morreram.
Negociações iniciadas dez anos depois resultaram nos Tratados Torrijos-Carter, assinados em 1977 pelo presidente americano Jimmy Carter e o então homem forte do Panamá, Omar Torrijos. O acerto garantiu a neutralidade do canal e sua transferência para o Panamá em 31 de dezembro de 1999.
Construc¸a~o do Canal do Panama´, em 1907
O rival nicaraguense
A construção de um canal cruzando a Nicarágua quase vingou no início do século XX, quando era a opção favorita do Senado dos EUA na disputa com o Panamá. Derrotado na época, o projeto ressurgiu nos últimos anos por meio de uma empresa chinesa, a Hong Kong Nicaragua Development Group (HKND) e terá suas obras iniciadas em 22 de dezembro de 2014.
Para o governo nicaraguense, trata-se do negócio da vida: o país, um dos mais pobres das Américas, precisa desesperadamente de recursos. Mas a iniciativa parece nebulosa. Para começar, Wang Jing, que comanda a HKND, é pouco conhecido na China, embora apareça no portal da empresa como “presidente de mais de 20 empreendimentos em 35 países”. O acordo entre as partes prevê que a HKND obteria os US$ 40 bilhões necessários para fazer o canal e ganharia os direitos para operá-lo por até 100 anos.
Fundada em 2012, a HKND não conseguiria esse mar de dinheiro sem o apoio de um rico investidor – o governo chinês, por exemplo. Todas as seis opções de rota em estudo envolvem consideráveis problemas ambientais e sociais. Afora cortarem reservas indígenas, elas passam pelo Lago Nicarágua, fonte de água potável para boa parte da população do país e rico em pescado. Além disso, a viabilidade econômica do projeto tem sido questionada. Mas a HKND garante que o canal estará pronto em 2019 e poderá receber os maiores Post-Panamax existentes (parte dos quais não caberá no concorrente).
Panorama ae´reo do novo acesso ao Canal do Panama´, pelo lado do Oceano Paci´fico
Passagem para o gás
Produto hoje abundante nos EUA, o gás natural liquefeito (GNL) poderá se tornar um item frequente no canal. “Hoje, apenas cerca de 6% dos navios-tanque de GNL podem passar pelo Canal do Panamá”, diz Mark Perry, professor de economia da Universidade de Michigan. “Após a expansão, ele acomodará cerca de 90% desses navios.” O GNL americano tem um enorme mercado potencial em economias atualmente dependentes de carvão e petróleo para produzir energia, como Japão e Índia, que com ele poderão reduzir suas emissões de gás carbônico.