Ciclovia na Paulista é projeto de R$ 80 milhões que promete transformar SP
BBC Brasil
-
01 de julho de 2015
1453 Visualizações
Foi numa manhã de sábado. Em 29 de junho de 2002, ciclistas se reuniram pela primeira vez na Avenida Paulista, em São Paulo, para percorrer as ruas da cidade e exigir mais investimentos para bicicletas e outras alternativas de transporte além do automóvel.
Naquele dia, os motoristas buzinaram e gritaram muito para a gente sair da rua, dirigindo bem perto para nos assustar, diz Odir Júnior, de 45 anos, um dos 12 participantes da primeira edição do evento conhecido como Bicicletada. Desde então, esta mistura de celebração e manifestação passou a ser realizada toda última sexta-feira do mês na Paulista.
Exatos 13 anos depois e, de maneira simbólica, no domingo 28 de junho, a polêmica ciclovia no principal cartão postal da capital paulistana foi inaugurada em clima de festa, com muitas bicicletas, milhares de pessoas – incluindo muitas crianças participando de atividades pela avenida – e alguns poucos protestos isolados contra corrupção e o PT, partido do prefeito Fernando Haddad.
Foi preciso muito sangue, suor e lágrimas para conseguirmos isso, diz Júnior, em referência às mortes de três ciclistas e um quarto que perdeu o braço em acidentes na via nos últimos anos. Por isso, ele não resistiu à tentação de usar a nova ciclovia mesmo antes de ela ser inaugurada. É um ponto de virada da cidade.
No último ano, São Paulo ganhou 238 km de ciclovias, quatro vezes mais do que havia sido construído ao longo de sua história, tendo como trecho mais simbólico a pista de 2,7 km no canteiro central da Paulista.
O projeto é uma das principais metas da gestão do atual prefeito Fernando Haddad (PT), que prometeu ampliar os 64 km existentes em 2013 para 400 km até 2016. A iniciativa é polêmica e já foi alvo de ações na Justiça, dividindo não só quem vive na cidade, mas também sua classe política.
Muitas pessoas queriam usar bicicleta, mas tinham medo. Decidimos priorizar a segurança dos ciclistas. É um direito deles, diz o secretário municipal de Transportes Jilmar Tatto.
As críticas são normais, porque é algo novo. Mas falta informação a quem as faz. Muitas pessoas não entendem que a bicicleta tem que fazer parte do sistema de transporte da cidade, afirma Tatto.
O senador Aloysio Nunes, do PSDB de São Paulo, por outro lado, disse se tratar de um delírio autoritário de Haddad, que esparrama ciclofaixas a torto e a direto, provocando revolta dos moradores, esclarecendo mais tarde não ser contra as faixas, mas a forma como são implementadas.
O vereador Andrea Matarazzo, líder do PSDB na Câmara Municipal, tem a mesma posição. O atual modelo foi decidido de forma centralizada e com pouca discussão pública, disse ele à BBC Brasil.
Ele fez um pedido para que uma CPI esclareça critérios adotados na elaboração do projeto e de seus contratos. Não sou contra as ciclovias, pelo contrário. Mas, como vereador, tenho que cobrar que a Prefeitura realize seu trabalho da forma correta.
Mas há um ponto em que situação e oposição convergem: nada disso teria ocorrido sem o trabalho realizado por mais de duas décadas por cicloativistas paulistanos. Com certeza a implantação foi motivada pela pressão deles, afirma Matarazzo.
Tatto diz que os defensores da bicicleta são persistentes, aguerridos e organizados. Eles fazem valer sua ideia do que é bom para São Paulo.
Os cicloativistas batem nesta tecla desde o fim dos anos 1980. Na mesma época em que a cidade perdeu sua primeira ciclovia, que foi destruída para dar lugar a um túnel, a jornalista Renata Falzoni, de 62 anos, começou a organizar passeios de bicicleta noturnos.
Era um ativismo disfarçado. Levava as pessoas para pedalar por diversão à noite para que não atropelassem ciclistas quando dirigissem de dia, diz Falzoni. Isso também incluiu a bicicleta na paisagem da cidade, fazendo com que os motoristas se acostumassem com nossa presença.
Ações assim continuaram sendo realizadas pontualmente na década seguinte, até vir a Bicicletada. O evento foi um ponto de encontro entre pessoas de diferentes profissões, classes sociais e regiões da cidade em torno da bicicleta, chegando a reunir até 500 pessoas em certas edições, e funcionou como um catalisador do cicloativismo.
Antes, os cicloativistas exigiam tudo com perfeita qualidade. Agora, aceitam algo feito de qualquer maneira, talvez por se sentirem contemplados por uma autoridade.
A Bicicletada teve um papel central na forma como atuamos politicamente, diz Daniel Guth, diretor da associação de ciclistas paulistanos Ciclocidade. A partir dela que nos articulamos e passamos a realizar um trabalho colaborativo.
A partir de 2009, quando a cidade ganhou rotas para ciclistas demarcadas nas ruas e ciclofaixas de lazer aos domingos e feriados, os ciclistas paulistanos também passaram a criar organizações, como o Ciclocidade e também o Instituto CicloBR.
A Bicicletada não dava conta de promover o debate sobre ciclismo na cidade, diz Thiago Benicchio, ex-diretor do Ciclocidade. Precisávamos de uma representação institucional para dialogar com o poder público.
Por meio destes grupos, os ciclistas fizeram campanha junto aos candidatos à Prefeitura em 2012, pedalando com os cinco principais nomes daquelas eleições, e conseguiram que tanto o atual senador José Serra (PSDB) quanto Haddad assinassem uma carta se comprometendo a ampliar a rede cicloviária para 400 km.
No ano seguinte, nada ainda havia sido feito pela atual gestão quando David Souza, de 23 anos, perdeu um braço ao ser atropelado na Paulista. Na mesma noite, cicloativistas ativaram seus contatos e levaram centenas de pessoas para a frente da casa do prefeito para cobrar que tirasse do papel a promessa feita meses antes.
Em março deste ano, eles deram outra mostra de seu poder de mobilização, ao reunir 7 mil pessoas para fechar a Paulista e protestar contra a decisão da Justiça de paralisar as obras das ciclovias na cidade.
A promotora Camila Mansour, do Ministério Público Estadual, havia entrado com uma ação em que questionava os investimentos, alegando falta de planejamento do projeto e apontando problemas na execução. Um juiz acatou seu pedido, mas a interrupção das obras acabou revertida em uma instância superior.
Quando a decisão veio a público, os ciclistas estavam no meio de sua marcha. Logo, o som de apitos e gritos de ordem – mais bicicletas, menos carros – deu lugar a celebrações e aplausos.
Iniciativa polêmica
O Ministério Público diz ter investigado as novas ciclovias após receber dezenas de reclamações de moradores. De fato, a iniciativa é acompanhada por uma polêmica tão grande quanto a dimensão do projeto de R$ 80 milhões.
Uma pesquisa do Datafolha indica haver respaldo popular para sua implementação. Na consulta feita em fevereiro, 53% apontaram usar bicicleta ao menos uma vez por semana e 66% disseram ser a favor das ciclovias na cidade de São Paulo.
Demoraram para fazer isso. Já vi muitos acidentes. Agora está mais seguro pedalar, diz a estudante Camille Veronese, de 20 anos.
É muito dinheiro para beneficiar uma minoria. Poderia ser melhor aplicado na saúde, educação ou transporte público.Lara Gama, analista
O artista visual Rodrigo Ribeiro, de 40 anos, diz que estava prestes a desistir de pedalar por causa da agressividade dos motoristas e mudou de ideia com as novas ciclovias: Vai mudar a cara da cidade. Em dez anos, haverá muito mais bicicletas nas ruas.
Mas este apoio vem caindo. Em setembro, quando o Datafolha fez a primeira pesquisa sobre o assunto, 14% reprovavam as ciclovias. Hoje, são 27%.
É muito dinheiro para beneficiar uma minoria. Poderia ser melhor aplicado na saúde, educação ou transporte público”, diz a analista Lara Gama, de 32 anos.
O taxista Marcos Segattin, de 50 anos, aprova a política por acreditar aliviará o trânsito, mas critica a qualidade das faixas. Fizeram nas coxas. Parece que estavam com pressa, talvez para melhorar a imagem do prefeito.
O estudante Eduardo Saqueti, de 19 anos, também considera as ciclovias importantes, mas diz que são pouco usadas e tiram vagas de estacionamento das ruas.
Na defensiva
Diante destas críticas, ciclistas tratam de defender a expansão das ciclovias. Tem locais em que poderia ter sido feito melhor? Claro, mas falhas podem ser corrigidas, diz Guth, do Ciclocidade.
Uma ciclovia ter um buraco não desabona a política, assim como um hospital não ter instalações ideais não invalida a necessidade de termos saúde pública.
Os ciclistas dizem não ser verdade que faltou de planejamento, indicando que ao longo das últimas três décadas foram propostos na cidade ao menos três grandes projetos de redes cicloviárias, nunca implementados. E também refutam o argumento de que não foi feito um amplo debate público.
Foi tema de reuniões sobre o plano diretor da cidade. Houve audiências públicas. Fui lá e disse o que achava. Mas, se a pessoa não está em contato com o poder público, não adianta reclamar depois, diz William Cruz, do site Vá de Bike.
Ainda afirmam que problemas apontados até agora são de menor importância diante da perspectiva de finalmente verem atendidas suas demandas. Fazer coro com este tipo de crítica pontual não levaria a nada, só desestimularia a política pública, afirma Falzoni.
Falhas podem ser corrigidas. Uma ciclovia ter um buraco não desabona a política, assim como um hospital não ter instalações ideais não invalida a necessidade de termos saúde pública.Daniel Guth, diretor do Ciclocidade
Mas nem todos que defendem a expansão de espaços para bicicletas em São Paulo concordam com esta postura.
Tem ciclovia mal feita e muita gente insatisfeita com elas. Não concordo com estas pessoas, mas passar por cima dela não é certo, diz Talita Noguchi, dona do bar e bicicletaria Las Magrelas.
As ciclovias precisam ser feitas respeitando o processo democrático. Se não for assim agora, vamos poder reclamar quando o prefeito fizer algo de que discordamos da mesma forma?
Para a ex-vereadora Soninha Francine (PPS), os ciclistas erram ao não criticar de forma mais veemente as falhas do projeto.
Já fiz parte do cicloativismo, mas hoje não me identifico mais. Antes, exigia-se tudo com perfeita qualidade. Agora, é o extremo oposto. Aceitam algo feito de qualquer maneira, talvez por se sentirem contemplados por uma autoridade, diz Francine.
Devemos ser tolerantes com erros, mas, se engolirmos todas as falhas em nome de um projeto maior, isso pode acabar comprometendo o próprio projeto.
Já ganhou?
Com a inauguração da ciclovia da Paulista, São Paulo passa a ter 303 km de vias para bicicletas, o que representa 1,7% das ruas e avenidas da cidade.
Junto com a implantação de 320 km de corredores de ônibus, este projeto rendeu à cidade o reconhecimento do Instituto para Transporte e Política de Desenvolvimento, ONG com sede nos Estados Unidos, com o prêmio de Transporte Sustentável, já conferido a cidades como Nova York, Buenos Aires, Bogotá, Copenhague e Berlim.
Vivemos uma crise de mobilidade e reconhecemos as iniciativas de cidades que tiveram a coragem de tentar mudar este cenário, disse Clarissa Linke, diretora da ONG no Brasil.
Os ativistas fizeram uma grande festa neste domingo na avenida mais famosa da cidade, com direito a faixa inaugural, música e convidados vindos até de outros Estados.
É um momento histórico, diz André Soares, diretor da União de Ciclistas do Brasil, com sede no Paraná. São Paulo influencia o desenvolvimento de outras cidades brasileiras. Quando mostra que bicicletas e carros podem conviver, por que isso não seria possível em outros lugares?
Mas a nova faixa na Paulista será celebrada pelos ciclistas paulistanos como mais uma conquista e não como uma vitória definitiva.
A discussão já está ganha. Ninguém mais é contra a bicicleta. Mas ainda temos um longo trabalho pela frente para consolidar como uma política de Estado e não de governo, afirma Guth, do Ciclocidade.
Sempre há o risco do próximo prefeito representar um retrocesso. Estamos de olho e continuaremos a exigir melhorias até chegarmos ao ponto em que a gente não seja mais necessário.
Ao menos para os cicloativistas, a expansão das ciclovias, assim como a bicicleta - que não tem marcha ré -, só pode seguir numa direção: para frente.