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‘As múltis só querem ficar com o filé mignon’

O Estado de São Paulo - 02 de março de 2016 1340 Visualizações
RIO - Após o Senado aprovar o fim da exclusividade da Petrobrás na liderança do pré-sal, o ex-diretor de Exploração e Produção da petroleira, Guilherme Estrella, que chefiou, de 2003 a 2012, a equipe que descobriu o pré-sal, disse em entrevista ao Estado torcer pelo veto da presidente Dilma Rousseff ao novo marco legal, que acaba com a obrigatoriedade de a estatal participar de todos os blocos do pré-sal. Para o geólogo que ingressou na estatal ainda monopolista de 1965, as multinacionais “só querem ficar com o filé mignon”. Disse ainda que “não pode uma empresa petrolífera ser gerenciada como um banco”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O País deve o pré-sal à Petrobrás?
Não digo que deva à Petrobrás. A empresa cumpriu sua missão. Essa grande transformação do Brasil num país independente, com autonomia em energia, fertilizantes e petroquímicos foi o trabalho dos últimos 15 anos. O pessoal (funcionários) está de cabeça baixa (por causa das denúncias de corrupção). Vamos separar as coisas. Fizemos um grande trabalho. Aliás, eu vim aqui dizer isso.
Quanto as denúncias da Operação Lava Jato afetaram as conquistas com o pré-sal?
Se afetou, foi do ponto de vista emocional. O pré-sal é uma realidade concreta. Não há como dizer: não temos mais o pré-sal por causa da corrupção. A empresa continua tendo sustentação de longo prazo. E tem uma coisa que só a Petrobrás tem: a hegemonia do mercado brasileiro. Foi a Petrobrás que investiu. Vai no Alto Amazonas. Não tem a Shell lá, tem a BR. Essas empresas só vêm para o filé mignon.
 
A Petrobrás correu risco investindo no pré-sal?
Uma empresa privada não faria o que a Petrobrás fez. A quebra do monopólio foi em 1998. Qual a grande descoberta que essas empresas fizeram? Eu ficaria extremamente decepcionado, entraria numa profunda depressão se o pré-sal tivesse sido descoberto por outra empresa que não a Petrobrás. Nas nossas barbas. Em frente a São Paulo, principal centro econômico brasileiro. Eu não saberia o que fazer.
 
Como é essa história?
Cheguei lá (na diretoria) em 2003 e a Petrobrás estava concentrada na Bacia de Campos. Espalhamos as sondas. Na primeira licitação que participei, perdemos um bloco. Cinco minutos depois, toca o telefone. Era a ministra de Minas e Energia (Dilma Rousseff). Ela disse: estou sabendo que a Petrobrás perdeu um bloco. Eu comecei a dar explicações. Ela respondeu: só quero pedir que esse fato não se repita. O recado era: todas as áreas que a Petrobrás tem interesse, tem de ganhar.
 
Como a empresa chegou ao pré-sal?
A Petrobrás é uma empresa sem aversão ao risco exploratório. A gente não sabia de onde vinha a rocha geradora (do petróleo brasileiro). Li, então, um artigo de um francês naturalizado americano que me chamou atenção. Ele veio ao Rio e disse: vocês estão errados. A rocha não é a que vocês estão pensando. Desse estudo até a perfuração no campo de Lula (o primeiro do pré-sal), foram 24 anos.
 
Por que não foi feito antes?
Havia um carimbo de estéril na Bacia de Santos. Quando descobrimos primeiro o pós-sal em Santos, vimos que havia uma grande camada de sal e que as interpretações todas se ligavam. Foi configurada uma oportunidade. Percebemos que estávamos diante de algo diferente, que precisava ser tratado diferentemente. A probabilidade de encontrar petróleo é de praticamente 100%.
 
O sr. participou da formulação do marco do pré-sal?
Eu só disse ao governo: é um fato novo. Constituiu-se um grupo de trabalho, coordenado pela ministra de Minas e Energia (Dilma). Sou testemunha de como o pré-sal foi discutido até chegar ao texto central que instituiu o regime de partilha, a formação da PPSA (Pré-sal Petróleo SA) e a Petrobrás como operadora única. Foi mais de um ano de discussão. Houve muitos depoimentos contrários.
 
Qual era a posição da então ministra Dilma?
A Dilma era coordenadora (do grupo de trabalho). Ela deixava discutir. Foi construindo a opinião na cabeça dela, informando ao presidente e aí chegou-se ao texto final. Foi uma construção democrática, que posicionou a Petrobrás como operadora, que conduz o negócio e tem o sentimento de propriedade.
É emblemático que seja a presidente Dilma a sancionar as mudanças (que acabam com a obrigatoriedade de a Petrobrás participar de todos os blocos), nove anos após defender o marco?
Democracia é isso mesmo. Temos os poderes constituídos e o presidente tem a função de harmonizá-los. As circunstâncias mudam. O presidente tem a capacidade, o direito de vetar. Não sei como ela vai agir.
 
O senhor acha que ela veta?
Pessoalmente, prefiro que ela vete. Isso é de tal forma importante que, na minha visão, como cidadão, devemos retornar ao Congresso para, com um voto mais qualificado, apreciar o veto presidencial.
 
Houve pressão após a descoberta do pré-sal?
A pressão é constante. O cônsul geral norte-americano no Rio parabenizou o trabalho, mas, falando em nome de empresas estrangeiras, questionou a operação única, fazendo o trabalho dele de forma absolutamente legítima. A descoberta mais importante dos últimos 50 anos na indústria petrolífera mundial e os caras ficarem de fora? Eles tinham muito interesse, é algo absolutamente normal.
 
Não configura lobby?
Nada desonesto. Fui presidente do conselho de administração do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo). Me retirei da presidência desse conselho porque entendia que defendia o interesse das estrangeiras, combatendo o novo marco regulatório. Havia um conflito de interesses gritantes.
 
A Petrobrás dá conta da operação, mesmo em crise financeira?
Temos de gerenciar o pré-sal a longo prazo. Não interessa, com o barril de petróleo a US$ 30, exportar 1 milhão de barris. Para que abrir licitações agora? O País tem uma situação confortabilíssima de soberania energética. Isso não pode ser medido monetariamente. É um valor de sustentação do País.
 
Esse patamar de preços mantém as áreas viáveis?
A Petrobrás produz 2 milhões de barris por dia nas bacias de Santos e Campos, na frente do mercado consumidor. Nós produzimos a US$ 8 o barril no pré-sal por usar a infraestrutura vizinha da bacia de Santos. É uma vantagem competitiva. As grandes empresas mundiais produzem 4 milhões de barris por dia em campos espalhados no mundo, com operação caríssima.
 
A mudança na operação única abre brecha para pressão sobre o conteúdo local?
Desistir do conteúdo nacional é o fim da picada. Temos uma riqueza, descoberta em território nacional por empresa nacional. Chega na hora de gerar empregos, você vai levar para fora?
 
O senhor participou da criação da Sete Brasil?
Do conceito. A construção de sondas completa o ciclo de reestruturação da indústria naval. As águas ultraprofundas são a última fronteira de exploração petrolífera do mundo e vão demandar sondas. São equipamentos de elevado nível tecnológico. Produzi-los daria à indústria brasileira competitividade internacional. E havia a necessidade de cumprir os níveis de conteúdo nacional.
 
Onde deu errado?
Não sei, já não estava lá. Era necessário uma estruturação financeira que desse sustentação a um projeto de tão longo prazo. O modelo era bom.
 
Diante das denúncias, é possível defender a Sete Brasil?
Não tem nada a ver com corrupção. As empresas têm de ser preservadas. Nas empresas estão nossos engenheiros, o conhecimento, a tecnologia. Os Estados Unidos, em 2008, não destruíram suas empresas.
 
Com a queda das cotações e da taxa de afretamento, ainda considera bom o modelo?
Com US$ 30 o barril, toda a estrutura financeira precisa ser revista. O problema atingiu não só a Petrobrás. Há outras descobertas, em Sergipe e Espírito Santo, e as sondas serão necessárias.
 
A Petrobrás tem reduzido a exploração. A produção futura está comprometida?
É natural, mas tem um jeito de gerenciar a empresa, reunir as pessoas e dizer: não vamos parar a interpretação geológica. As pessoas vão ver que não estamos no fundo do poço, num beco sem saída.
 
E qual a saída?
Alongar o perfil da dívida. Temos de avançar em operações como a firmada com a China, que é excelente (captação de US$ 10 bilhões em troca de óleo). Dinheiro existe. A solução é mais política. Nossa base de sustentação está no mercado interno. Partir para a venda de ativos onde somos hegemônicos é precipitado. Não dá para decidir muita coisa em cima de uma crise.
 
Quando o senhor assumiu a direção em 2003, disse que a Petrobrás tinha se tornado uma empresa financeira atuando no setor de petróleo. Essa lógica está em curso novamente?
Se há alguém que tem aversão absoluta ao risco é o banqueiro. Se você tem grande dívida, chama o banqueiro para negociar. Não pode, na minha opinião, uma empresa petrolífera ser gerenciada como um banco. Mas não acho que isso esteja sendo feito na Petrobrás.
 
Como era sua relação com Paulo Roberto Costa e Renato Duque?
Não vou falar sobre isso. As pessoas não foram pegas na esquina, eram funcionários há décadas. Para as denúncias, temos a Justiça.
 
Como a Lava Jato afetou sua vida pessoal?
A Petrobrás não é um simples emprego, a gente se liga a um sonho. Essas ocorrências me atingiram profundamente. Como se sobrevive a isso? Na consciência do empenho de nossa equipe durante esses anos todos. E por isso descobrimos o pré-sal. Isso é o que nos deixa de cabeça erguida.