A perspectiva dos bens comuns: uma luz no fim do túnel?
O bem comum ou, o bem da comunidade é o bem ou propósito do próprio indivíduo que compõe aquela comunidade (Jamie Street/ Unsplash)
A expressão “bem comum” se refere a vários conceitos da filosofia, teologia, sociologia e ciência política, constituindo peça chave para a compreensão das relações sociais, tanto dos indivíduos entre si, como destes com a sociedade, sendo que sua exata captação é elemento que propicia, quando respeitado, a otimização do convívio social.
Para compreender a ideia de bem comum primeiro é necessário compreender o conceito de bem, uma categoria fundamental da filosofia prática e da ética clássica. Aristóteles ensina que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem e que o bem propriamente humano é o fim. Os fins que vão além das ações são desejados de per si, enquanto os que estão na própria ação são desejados em razão dos outros que lhe são superiores.
Em sentido amplo, o conceito de bem comum descreve o conjunto de benefícios que são compartilhados pelos membros de uma comunidade e, indagar sobre o conteúdo jurídico do bem comum, é um modo de se interessar pela proteção da coesão social e das inter-relações humanas como bens fundamentais de uma sociedade civilizada.
A definição de bem comum foi abordada pelos filósofos Platão e Cícero que a trataram como sinônimo de interesse comum. Já a Doutrina Social da Igreja formulou o conceito de bem comum na encíclica Pacem in Terris (1963), do papa João XXIII dizendo que: "O bem comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana e sua sociedade."
Outra definição do bem comum, como o objetivo por excelência do Estado, requer uma admissão de direito fundamental do indivíduo na sociedade, ou seja, o direito de todos à oportunidade de livremente dispor de sua vida por ação responsável, de acordo com a lei e a moral.
O bem comum, por vezes, tem sido visto como modelo ideal, o que representa o maior bem possível para o maior número de pessoas. O bem comum não exige que os membros de uma comunidade tenham os mesmos valores e objetivos, ele é o lugar comum de bens próprios da natureza humana, bens individuais comuns a todas as pessoas. Ele obriga a comunidade a garantir as condições para a realização dos valores pessoais, sem assumir como seus esses fins individuais.
Apesar da aparente complexidade do tema, esse é, na realidade, um argumento que sempre remeterá o intérprete do direito ao propósito, ou aos fins das ações e das instituições relevantes para a comunidade. O bem comum ou, o bem da comunidade é o bem ou propósito do próprio indivíduo que compõe aquela comunidade.
O grau e a forma do poder político também influenciaram o conceito de bem comum e buscaram atender a dois objetivos: a preservação da comunidade e a liberdade dos seus membros. Isso aconteceu porque todo indivíduo é dotado de livre arbítrio e só está disposto a sacrificar parte da sua liberdade se esse sacrifício se traduzir em benefício da comunidade na qual está inserido, ou se isto servir para garantir a sua própria subsistência. Assim, algumas comunidades preferiram sacrificar um pouco mais da liberdade de cada um para aumentar o grau de segurança coletiva, e outras poderão preferir sacrificar algo da segurança comum à liberdade de cada um.
O Código civil italiano em seu artigo 810 define bens como: “São bens as coisas que podem ser objeto dos direitos”. Já os bens comuns são definidos como todos aqueles que não são objeto de direitos patrimoniais, como por exemplo, o ar, o solo oceânico e a biodiversidade. Ferrajoli (2002) define o princípio do bem comum como um princípio personalista de justiça política, que decorre imediatamente do princípio da dignidade da pessoa humana e é estranho tanto às doutrinas individualistas e liberais quanto às coletivistas e totalitárias. Em breve síntese pode ser aceito como o conjunto das condições necessárias para que a pessoa humana realize sua dignidade. É um princípio que reclama a democracia como condição para sua realização. Sendo que a democracia não é apenas o regime mais favorável para sua efetivação, mas o único regime capaz de realizá-lo politicamente. Sua realização implica o princípio da subsidiariedade e o da solidariedade, sendo eles, os instrumentos para a realização da dignidade da pessoa humana.
Já os bens fundamentais são conceituados como aqueles cujo acesso é garantido a todos e a cada um. São considerados fundamentais os bens cujo acesso é garantido a todos e a cada um, visto que são objetos dos direitos fundamentais subtraídos à lógica do mercado. A garantia de novos bens como bens fundamentais exige uma decisão política de submeter ao direito as relações de mercado. Entretanto, há de se distinguir bens fundamentais de direitos fundamentais. Ainda que haja uma identidade no campo da hermenêutica, há uma distinção ontológica entre eles. Os direitos têm como objeto os bens que pretendem garantir ou efetivar e são, seu alicerce e objeto.
A partir da matriz antropológica elegida, a aplicação dos direitos fundamentais tem resultados práticos díspares. O individualismo fundamenta-os no poder que cada pessoa tem de apropriar-se individualmente dos bens naturais para poder fazer livremente o que quiser; o coletivismo fundamenta-os no poder de submeter os bens básicos ao comando coletivo do corpo social; e o personalismo fundamenta-os no poder de colocar esses mesmos bens a serviço da conquista comum de bens intrinsecamente humanos, morais e espirituais e da liberdade humana de autonomia. Os defensores de cada modelo sempre acusarão os demais de ignorar direitos essenciais do ser humano.
A importância dos bens comuns e fundamentais na seara ambiental se dá para exprimir uma reivindicação direta para pôr termo a uma específica violação: o desfrute dos recursos naturais por parte dos países mais ricos e, sobretudo, a devastação do planeta provocada pelo desenvolvimento industrial. É desta devastação e do perigo de uma destruição irreversível dos bens e dos recursos vitais para o futuro do gênero humano que nasceu a temática dos bens comuns: tais são os bens de todos – aqueles que os romanos chamavam de res communes omnium – como o ar, o clima, a água, as órbitas dos satélites, as bandas do éter, os recursos minerais das profundezas marinhas, a assim chamada biodiversidade e todos os outros bens do patrimônio ecológico da humanidade.
Daí a necessidade de uma nova dimensão do constitucionalismo e do garantismo: um constitucionalismo e um garantismo a longo prazo, além de global, para além da lógica individualista dos direitos e do estreito localismo da política das democracias nacionais. Nessa perspectiva, às muitas cartas e convenções internacionais e constitucionais dos direitos fundamentais, deveriam ser acrescentadas Cartas constitucionais e Cartas internacionais dos bens fundamentais, idôneas, por um lado, como garantia dos bens personalíssimos e dos bens comuns para impor limites rigorosos ao mercado e ao desenvolvimento industrial; por outro lado, como garantia dos bens sociais, para vincular a política para torná-los acessíveis a todos.
A natureza desses limites e vínculos e seu grau de rigidez dependem naturalmente do caráter mais ou menos vital dos bens fundamentais que se tenta proteger e das formas de sua possível utilização: do caráter regenerável ou não regenerável tanto das partes do corpo humano como dos bens ecológicos, do caráter gratuito da sua cessão e dos usos aos quais são destinados. Proteger um bem como fundamental quer dizer em todo caso torná-lo indisponível, isto é, inalienável e inviolável e, portanto, subtraí-lo ao mercado e ao arbítrio das decisões políticas, portanto de maioria.
É em primeiro lugar necessário – sob a base do reconhecimento do caráter de poderes privados, mais do que de liberdades dos direitos de iniciativa e de autonomia empresarial – o desenvolvimento, em garantia dos bens comuns, de um constitucionalismo de direito privado, isto é, de um sistema constitucional de regras, de limites, de vínculos e de controles, supraordenado a tais poderes econômicos privados, além de sê-lo aos poderes políticos, e dirigido a disciplinar-lhes o exercício: de impedir, em particular, a emissão de substâncias tóxicas nocivas à saúde e ao ambiente, bem como a apropriação privada, a dissipação ou a destruição dos bens comuns, como o ar e a água de cuja defesa depende o futuro do planeta e a sobrevivência da humanidade.
É necessário, em segundo lugar, o desenvolvimento de um constitucionalismo de direito internacional. Mesmo porque as agressões aos bens comuns do ambiente – o aquecimento climático, a poluição do ar e dos mares, a redução da biodiversidade e a destruição de muitas espécies animais e vegetais – têm já assumido um caráter planetário, exigindo a introdução de normas, limites, vínculos, controles, funções e instituições de garantia por sua vez em nível planetário.
Mas o contexto global não se resume apenas na proteção aos bens comuns e fundamentais, ele vai além e requer a observância de aspectos de gestão e governança compartilhada e de aspecto transnacional.
*Jose Antonio de Sousa Neto é professor da EMGE - Escola de Engenharia de Minas Gerais ** Luciana M. T. Fabel é doutoranda da Escola Superior Dom Helder Câmara