A infinidade de informações disponíveis na internet frequentemente nos faz questionar sobre quais delas são confiáveis ou não. É sobre a necessidade de aprender a lidar com a abundância de fontes e de dados para entender o mundo ao nosso redor que o professor André Martins escreveu o livro Nossas falhas de raciocínio: ferramentas para pensar melhor. Com lançamento no domingo, dia 18 de junho, na Livraria Martins Fontes, em São Paulo, o texto trata sobre como dialogar de maneira produtiva com pessoas com as quais discordamos e a importância de questionarmos nossas próprias certezas e métodos de aprendizado. Segundo o professor, assim como há ferramentas que são extensões das nossas mãos, há outras que são extensões do nosso cérebro, sem as quais nosso raciocínio é falho. Martins, que trabalha com um campo novo da ciência, conhecido como dinâmica de opiniões, conversou com o Jornal da USP a respeito desse novo lançamento.
Em qual área do conhecimento se encaixa o livro Nossas falhas de raciocínio?
Eu chamo pré-metodologia. Ele explica por que precisamos da metodologia e quais são as ferramentas básicas dela, sem realmente ensinar a usá-las. Isso os livros de metodologia fazem. É uma conversa sobre onde o nosso raciocínio falha e por que acreditamos em coisas independente de haver evidências ou acreditando mais do que as evidências dizem que poderíamos. Embora seja competente para outras coisas, o nosso raciocínio falha quando vamos falar de ciência. O livro é sobre as falhas e as ferramentas necessárias para corrigir essas falhas.
Há um crescimento da preocupação dos professores com a falta do raciocínio lógico nos alunos dos cursos de graduação?
Por milhares de anos nós discutimos como melhor argumentar. Talvez exista hoje mais gente sem uma formação sólida tendo acesso à informação. Antigamente, quem tinha acesso à informação tinha também formação lógica. Nós democratizamos o acesso, mas sem dar uma formação sólida. Dessa forma, uma pessoa pode achar que um palpite valha tanto quanto uma opinião muito bem estruturada de especialista, o que não é verdade. Se uma pessoa tem acesso aos fatos, sabe usar os métodos de pesquisa e a outra não, a primeira tem uma informação de muito melhor qualidade. Enquanto é excelente que as pessoas tenham cada vez mais acesso à informação, elas ainda não têm o treinamento sobre como usar esse conhecimento.
O livro nos leva a uma conclusão de que não temos como ter certezas sobre o mundo, apenas probabilidades. Como podemos procurar pelos nossos erros sem desanimar no meio do caminho com a falta de respostas?
Alguma incerteza sempre existe, sim. Nós sempre temos a possibilidade de vir a ter teorias científicas melhores que as atuais, mas já temos várias que funcionam de forma muito sólida. Mas o debate com pessoas que duvidam da ciência deve ser primeiro sobre como chegar a conclusões, porque, se as pessoas estão usando critérios diferentes para chegar a elas, a conversa não vai a lugar nenhum. O nosso cérebro é bom, mas nós temos capacidades limitadas de raciocínio.
Em parte, a nossa capacidade de raciocínio evoluiu para conseguirmos uma justificativa rápida, que às vezes é errada, e gostamos dela porque não dá mais trabalho. Para os nossos antepassados, o risco de viver sozinho era muito maior. Da mesma forma, pertencer a um grupo social era importantíssimo. Se a explicação do grupo não fosse tão ruim, mas não fosse a melhor possível, poderia ser suficiente para o dia a dia.
Os métodos que foram desenvolvidos durante milênios pelos nossos melhores pensadores montaram uma base indispensável para concluir algo. Ainda que você não vá ser um cientista, é importante saber como essas ferramentas funcionam, até para saber as limitações do que podemos concluir. A ciência não fornece certezas, mas às vezes chega muito perto de fornecer e dá as respostas de como o mundo realmente funciona.
Você diz que os seres humanos escutam melhor as pessoas que estão fisicamente presentes, mas não seria de se pensar que a melhor maneira de apresentar argumentos lógicos de forma efetiva seria massificando essa comunicação científica para que essa argumentação atinja grupos maiores?
Em princípio, um cientista vai querer apresentar os argumentos lógicos, porém o que convence são os emocionais. Existe um conflito entre como argumentamos e o que realmente funciona para o grande público. As grandes figuras públicas que realmente convencem as pessoas sem contato direto usam o emocional, pelo medo ou pela esperança.
O esforço de divulgação é fundamental, mas não é suficiente dado como funciona o ser humano. Eu gostaria de ver surgir questões de metodologia no ensino médio, ensinando que o nosso raciocínio é bom, mas não é perfeito.
Que áreas do conhecimento seriam necessárias para uma formação escolar básica?
É fundamental o básico de cognição, de como o nosso cérebro funciona primeiramente, entender um pouco de lógica, das bases da filosofia e de por que um raciocínio de matemática é importante. Para discutir vacinas, é preciso ter um pouco de informação sobre metodologia de estatística e metodologia de pesquisa. Um básico sobre a história do mundo, sobre a história de onde se vive. Se a pessoa não tiver um arcabouço geral, é muito mais fácil de ser enganada.
Se quisermos só formar robôs para trabalhar sem pensar, de fato não precisamos de filosofia, mas precisamos dela se quisermos ser capazes de entender se deveríamos tomar uma vacina, entender a importância de uma pesquisa científica ou entender que a Terra não é plana.
Você diz que diminuir a agressão pode ajudar que mais pessoas raciocinem corretamente em um confronto. Isso costuma ser verificado em simulações computacionais? Como são feitos esses experimentos?
Essa é mais uma questão de psicologia do que de simulação. Quando alguém é mais agressivo, isso vira uma briga e a tendência da outra pessoa a se defender aumenta.
Nas simulações [computacionais], eu trabalhei, primeiramente, com dinâmicas de opiniões em agentes que confiavam plenamente nos vizinhos. Não havia conflito. Eles simplesmente conversavam e ficavam com opiniões muito fortes, que podem ser chamadas de extremas. Também investiguei o que aconteceria se eles fossem capazes de se desconectar de alguns vizinhos.
Eu comecei a explorar o que acontece se você mudar o tipo de comunicação, em uma área de estudos chamada sociofísica ou dinâmica de opiniões, na qual se estuda modelos de como as opiniões se propagam. Ela é parente da epidemiologia, porque vê a propagação de coisas. Nesse caso não é doença, é uma opinião. Tem características próprias, portanto, mas os primeiros modelos eram bem parecidos com os modelos de epidemiologia. Agora nós já desenvolvemos esses modelos o suficiente para as pessoas estarem mais interessadas em começar a validar os modelos contra o que realmente acontece, sabendo que eles ainda precisam ser mais bem trabalhados. Estamos começando a introduzir vieses, formas mais sofisticadas ou diferentes de comunicação, ainda assim são simplificações de como realmente as pessoas operam.
Não é muito diferente do que acontece em física, em que, para explorar o que acontece em um gás, ao invés de escrever toda a complicação quântica do átomo, dos elétrons, dos prótons e como eles interagem, você considera cada molécula uma partícula se chocando e batendo e tira conclusões a partir disso, ou seja, faz uma aproximação, que para certas previsões pode ser um aproximação muito boa.
Pensando nos modelos de dinâmica de opiniões, podemos dizer que o mecanismo de desconfiança e as nossas ambições sociais por si só já seriam responsáveis pelas bolhas de ódio na internet, ou as redes sociais, através de mecanismos desonestos, aumentam essa desconfiança entre grupos que pensam diferente?
Os experimentos de simulação mostram que, mesmo com uma simplificação do mundo real, nós vemos essas bolhas aparecendo. Isso não quer dizer que não existam desonestidade e outros efeitos que podem tornar essas coisas mais graves. Se no meio disso, no mundo real, ainda temos agentes maliciosos querendo simplesmente ascender dentro daquele grupo e começam a propagar ódio ou a propagar desinformação porque ganham com isso, o problema vai ficar pior.
Raciocinar seria trabalhar nossas incertezas em termos matemáticos? A tendência é que a estatística cubra todas as áreas do conhecimento?
Em algumas áreas o uso de estatística não é completamente disseminado e há questões metodológicas de estatísticas que são bastante complicadas quando há excesso de efeitos. Quando lidamos com seres humanos, por exemplo. Então existem motivos para se andar devagar, mas também é fundamental ter ferramentas que sejam verificáveis e raciocínios que sejam auditáveis por outras pessoas que possam acompanhar e verificar e achar os erros.
Se tivermos ideias certas, mas introduzirmos detalhes errados, isso levará a previsões erradas. Nós sabemos que os modelos de sistemas sociais mais simples não seriam suficientes, mas era um primeiro passo para saber depois como fazer modelos mais sofisticados. Eles dizem o que acontece em situações-limites onde valem somente as regras do seu modelo, mas na sociedade humana existem mais coisas acontecendo. No entanto, a matemática deixa claro quais são as suposições.
Se não tiver como fazer a matemática, porque às vezes é complicado demais, continuaremos raciocinando apenas verbalmente, mas ao menos tentaremos deixar um raciocínio o mais claro e lógico possível. Tem gente que gosta de deixar as coisas rebuscadas e de difícil entendimento. Isso faz com que seja muito difícil apontar onde a pessoa está errada. Por outro lado, não se sabe o que ela está querendo dizer de verdade, portanto não será útil. Quando ainda não sabemos aplicar a matemática, ser capaz de montar o argumento mais sólido possível, mais lógico possível e mais claro possível continua sendo fundamental.
Existe algum método eficiente para explorar nossas preferências pessoais da mesma forma que exploramos os fenômenos naturais?
Os psicólogos e os economistas fazem muitos experimentos com preferências e tentativas de verificar como nós funcionamos. Inicialmente tentavam encaixar como nós operamos na teoria da utilidade esperada, que não funciona. Nós temos outros modelos que tentam descrever melhor o que eles chamam de falhas de racionalidade e tentativas de descrever simplesmente como fazemos escolhas.
Por exemplo, com mais informação, chegamos a um ponto em que nós não melhoramos a qualidade da nossa avaliação e, mesmo assim, começamos a ficar mais confiantes. Nosso excesso de confiança é especialmente sério quando não temos acesso à informação sobre quando erramos.
Em uma pesquisa — não acadêmica, mas de qualquer assunto de interesse —, como podemos lidar com informações conflitantes e com a incerteza dos dados?
A primeira coisa é reconhecermos que não somos especialistas e, portanto, o que achamos não é muito relevante. Se há especialistas conflitantes dizendo coisas diferentes, primeiramente devemos ver se eles são realmente especialistas. Infelizmente não há como escapar do argumento de autoridade quando não entendemos da área. Apesar de todo mundo dizer que argumento de autoridade é uma falácia, a autoridade é como nós aprendemos desde pequenos, vendo nossos próprios pais, nossos professores e autoridades nos quais nós confiamos. Passa a ser fundamental então saber em quem confiar, verificando se a pessoa de fato estudou, se ela é reconhecidamente especialista na área e respeitada inclusive pelo outro lado. Se não for possível, precisamos pelo menos encontrar o que cada lado defende. Dependendo da discussão, há lados que sequer entendem o mínimo de metodologia. Não quer dizer necessariamente que as ideias deles estejam erradas.
Para dar um exemplo, vejamos o pessoal da ufologia. Pode haver extraterrestres nos observando que não querem que a gente saiba disso? Em princípio, pode, embora não tenhamos nenhuma evidência para isso. Mas uma pessoa que defende ufologia deveria procurar motivos pelos quais ela está errada. Esse é um aspecto fundamental.
"Em geral as pessoas só procuram motivos pelos quais elas estão certas. No momento em que elas começarem a procurar motivos pelos quais estão erradas e descobrirem uma evidência que estão certas, ótimo. Mas enquanto elas fazem metodologicamente errado, os argumentos podem ser muito fracos também e não estão trazendo informações que sejam confiáveis."
Gostaria que o senhor explicasse para os leitores do Jornal da USP como a familiaridade com um assunto pode influenciar nossa propensão a cometer erros.
Ser familiar com um assunto não significa necessariamente conhecer todos os lados dele. Você poderia começar já tendo uma preferência e só buscou ideias que apoiam o que você pensa. Quanto mais inteligentes e capazes formos conhecendo apenas um lado da questão, mais nos enganamos, pois temos mais ferramentas para isso.
A familiaridade benéfica ocorre quando nós entendemos e conhecemos a qualidade dos raciocínios dos vários lados da questão, entendendo os argumentos sólidos de cada um dos lados e o que é somente preferência. Para nossas preferências, a lógica não diz o que é certo ou errado. Nesse caso temos que achar uma solução política de como incorporar as preferências de mundo distintas.
Existe modelagem computacional e matemática sobre quando a cooperação vai ser melhor e quando a competição acaba impedido a cooperação. Para descrever bem a sociedade, precisamos ver como as pessoas cooperam — muita coisa funciona apenas por cooperação —, como as pessoas competem umas com as outras. Há coisas que dependem da competição ou que são influenciadas pelo fato de que as pessoas são competitivas. Há aspectos do ser humano que podem não ser tão compatíveis com as ideias que defendemos. Precisamos aprender para saber lidar com essas barreiras.
Há quem ache que é impossível separar a ideologia da ciência nessas áreas. Eu diria que temos que fazer uma tentativa. A tentativa é benéfica, ainda que seja para termos descrições um pouco menos ruins do que irá acontecer.
[Fotomontagem: Jornal da USP – Fotos: Freepik, Marcos Santos/USP Imagens e Pixabay]