Governança, mudanças climáticas e o dinheiro
Dunas do Parque Nacional Namib-Naukluft fotografadas do espaço (Nasa)
Este texto traz uma reflexão sobre a inexorável conexão entre governança empresarial, as mudanças climáticas, os mercados financeiros e a governança global. Talvez como poucos Larry Fink, CEO da BlackRock, tenha conseguido colocar de forma simples e clara o link entre estes elementos através de uma carta aberta aos seus clientes e, de forma mais ampla, aos seus stakeholders
Por que esta carta deste ano de 2020 é particularmente relevante? Primeiro, porque como já havia mencionado aqui, neste espaço, em artigos anteriores, a BlackRock é uma das maiores gestoras de ativos (fundos de investimentos) do mundo. Sob determinados parâmetros, a maior. Segundo, porque estas instituições precisam ter uma visão pragmática de longo prazo com relação à sustentabilidade de seus resultados. Fink resume: “Como gestora de ativos, a BlackRock investe em nome de outras pessoas. O dinheiro que gerenciamos não é nosso. Pertence a pessoas em dezenas de países que tentam financiar objetivos de longo prazo, como a aposentadoria. E temos uma profunda responsabilidade perante essas instituições e indivíduos em promover valor a longo prazo.”
Greve das escolas pelo clima,iniciativa estudantil contra o aquecimento global (Kevin Mueller/ Unsplash)
Aqui talvez esteja também uma das belezas do capitalismo. Embora imperfeito e com imensos e constantes desafios a vencer, nenhum outro sistema tem, na mesma dimensão, o princípio de prestação de contas, ou ainda mais importante, um “drive” inerente e inexorável nesta direção. Sistemas socialistas / comunistas não só padecem da incapacidade de precificação que acaba por inevitavelmente levar ao colapso de qualquer economia, mas também levam sempre à destruição dos quatro pilares básicos de qualquer tipo de governança: 1) A divulgação adequada de informações (disclosure) 2) A prestação de contas (accountability) 3) O equilíbrio / justiça (fairness) 4) Compliance. Observem os leitores que nem de longe estou dizendo que no Estado (Liberal) Democrático de Direito e o capitalismo têm estas questões bem resolvidas, mas que, por incontestáveis evidências, as alternativas sempre levam à antítese destes princípios. Acredito ainda que o caminho pragmático para enfrentar o desafio de um desenvolvimento sustentável global deve ter um lastro embasado mais na evolução e aprimoramento de pilares de uma governança global do que na generalização de princípios e postulados jurídicos de um constitucionalismo em uma escala mundial. As bases pragmáticas para esta governança global devem ter como referência os conceitos e princípios do Commom Law com o incremento de mecanismos de ordem econômica e financeira já existentes, e que podem ser aprimorados visando a efetividade em escala mundial e um maior consenso entre os Estados.
Ao reproduzir em seguida algumas partes da carta de Larry Fink ao mercado, e ele as apresenta, antes de tudo, de forma absolutamente pragmática, acredito que ficará mais claro aos leitores os argumentos centrais deste texto:
"A mudança climática se tornou um fator determinante nas perspectivas de longo prazo das empresas. Um risco que os mercados até agora têm sido mais lentos para refletir. Mas a conscientização está mudando rapidamente e acredito que estamos à beira de uma reformulação fundamental das finanças.
As evidências sobre o risco climático estão levando os investidores a reavaliar as principais premissas sobre finanças modernas. Pesquisas de diversas organizações - incluindo o Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, o BlackRock Investment Institute e muitas outras, incluindo novos estudos da McKinsey sobre as implicações socioeconômicas do risco físico do clima - estão aprofundando nossa compreensão de como o risco climático afetará nosso mundo físico e o sistema global que financia o crescimento econômico.
As cidades, por exemplo, serão capazes de suprir suas necessidades de infraestrutura à medida que o risco climático reformular o mercado de títulos municipais? O que acontecerá com a hipoteca de 30 anos - um elemento fundamental das finanças - se os credores não puderem estimar o impacto do risco climático em um prazo tão longo e se não houver mercado viável para seguro contra inundações ou incêndios em áreas afetadas? O que acontece com a inflação e, por sua vez, as taxas de juros, se o custo dos alimentos subir da seca e das inundações? Como podemos modelar o crescimento econômico se os mercados emergentes vêem sua queda de produtividade devido ao calor extremo e outros impactos climáticos? Essas perguntas estão conduzindo uma profunda reavaliação dos riscos e valores dos ativos. E como os mercados de capitais puxam o risco futuro antecipadamente, veremos mudanças na alocação de capital mais rapidamente do que as mudanças no próprio clima”
Painéis de energia solar (U.S. Department of Energy)Painéis de energia solar (U.S. Department of Energy)
“Como fiduciários, nossa responsabilidade é ajudar os clientes a navegar nessa transição. Nossa convicção de investimento é que os portfólios integrados em sustentabilidade e clima podem fornecer melhores retornos ajustados ao risco para os investidores. E com o impacto da sustentabilidade nos retornos dos investimentos aumentando, acreditamos que o investimento sustentável é a base mais forte para as carteiras de clientes no futuro.
Nos próximos anos, uma das questões mais importantes que enfrentaremos é a escala e o escopo das ações do governo sobre as mudanças climáticas, que geralmente definirão a velocidade com que nos movemos para uma economia de baixo carbono. Este desafio não pode ser resolvido sem uma resposta internacional coordenada dos governos, alinhada com os objetivos do Acordo de Paris.
A necessidade é particularmente urgente para as cidades, porque os muitos componentes da infraestrutura municipal - das estradas aos esgotos e ao trânsito - foram construídos para tolerâncias e condições climáticas que não se alinham à nova realidade climática. No curto prazo, parte do trabalho para mitigar o risco climático poderia criar mais atividade econômica. No entanto, estamos enfrentando o problema final de longo prazo. Ainda não sabemos quais previsões sobre o clima serão mais precisas nem quais efeitos deixamos de considerar.
Acreditamos que todos os investidores, juntamente com reguladores, seguradoras e o público, precisam de uma imagem mais clara de como as empresas estão gerenciando questões relacionadas à sustentabilidade. Esses dados devem estender-se além do clima, até questões sobre como cada empresa atende a todo o seu conjunto de partes interessadas, como a diversidade de sua força de trabalho, a sustentabilidade de sua cadeia de suprimentos ou a proteção dos dados de seus clientes. As perspectivas de crescimento de cada empresa são indissociáveis de sua capacidade de operar de maneira sustentável e atender a todo o conjunto de partes interessadas.
Uma empresa farmacêutica que aumenta os preços sem piedade, uma empresa de mineração que diminui a segurança, um banco que não respeita seus clientes - essas empresas podem maximizar os retornos no curto prazo. Mas, como vimos repetidamente, essas ações que prejudicam a sociedade alcançam estas empresas e destroem o valor para os acionistas.
Usaremos essas divulgações (informações – grifo meu) e nossos compromissos para verificar se as empresas estão gerenciando e supervisionando adequadamente esses riscos em seus negócios e planejando adequadamente o futuro. Na ausência de divulgações robustas, os investidores, incluindo a BlackRock, concluirão cada vez mais que as empresas não estão gerenciando adequadamente os riscos. Acreditamos que, quando uma empresa não está tratando efetivamente uma questão relevante, seus diretores devem ser responsabilizados.
Nos 40 anos de minha carreira em finanças, testemunhei várias crises e desafios financeiros - os picos de inflação da década de 1970 e início da década de 1980, a crise cambial asiática em 1997, a bolha “pontocom” e a crise financeira global. Mesmo quando esses episódios duraram muitos anos, eles eram todos, no amplo esquema das coisas, de natureza de curto prazo. A mudança climática é diferente. Mesmo que apenas uma fração dos impactos projetados seja realizada, esta é uma crise muito mais estrutural e de longo prazo. Empresas, investidores e governos devem se preparar para uma realocação significativa de capital.
À medida que nos aproximamos de um período de realocação significativa de capital, as empresas têm a responsabilidade - e um imperativo econômico - de fornecer aos acionistas uma imagem clara de sua preparação. E, no futuro, uma maior transparência nas questões de sustentabilidade será um componente persistentemente importante da capacidade de toda empresa de atrair capital. Isso ajudará os investidores a avaliar quais empresas estão atendendo efetivamente a seus acionistas, remodelando o fluxo de capital de acordo. Mas o objetivo não pode ser a transparência por causa da transparência. A divulgação deve ser um meio para alcançar um capitalismo mais sustentável e inclusivo. As empresas devem ser deliberadas e comprometidas em adotar objetivos e atender a todas as partes interessadas - seus acionistas, clientes, funcionários e as comunidades em que você opera. Ao fazer isso, sua empresa desfrutará de maior prosperidade a longo prazo, assim como investidores, trabalhadores e sociedade como um todo".
Vejam, portanto, os leitores, que há uma complexa e circular relação de causa efeito que liga as mudanças climáticas aos mercados financeiros e de investimentos, à governança das empresas e, por consequência, a uma governança global. Apesar dos desafios a boa notícia é que ela está em curso e fundamentada em uma força poderosa do mundo em que vivemos. O dinheiro. E o dinheiro (a riqueza) no sistema capitalista é pragmático. No contexto da engenharia a mensagem também não poderia ser mais clara. Projetos e investimentos não sustentáveis simplesmente não têm nenhum futuro!
*Professor da EMGE (Escola de Engenharia de Minas Gerais)